Mais que a Minha Própria Vida - Capítulo 33

Uma hora da manhã. Cama bagunçada, resto de pizza sobre a mesa, corpo movido a café. Tanto café que me faz parecer como um zumbi ou algo assim. Cena típica de domingos á noite. Ao menos os meus.

_ Oi, maluquinha. Tá até agora agarrada nesses livros? Deixa isso aí. - riu Susie, enquanto entrava pelo dormitório que dividíamos. Ela finalmente conseguira entrar para a JFG, a irmandade dos seus sonhos e, por esse motivo, raramente eu a encontrava a não ser nas aulas que pegávamos juntas. E já eram poucas, visto que havíamos escolhido cursos um pouco diferentes. Enquanto ela havia escolhido psicologia, eu decidira que tentaria me encontrar no jornalismo. Desde a decisão, eu estudava como louca para ter ótimas notas e manter a minha bolsa, além de fazer cumprir a promessa do Reitor Ronnie de me oferecer um estágio pela própria faculdade por merecimento. Logo nas primeiras provas, eu conseguira notas perfeitas. E olheiras negras e fundas. Mas eu não me importava. Estudar fazia com que eu não tivesse tempo para pensar em tudo. No sentido da vida, nesse tipo de coisa que faziam com que eu quisesse me matar. E então eu compensava todo o meu medo e sofrimento nos livros, esperando que um dia as coisas pudessem melhorar.

_ Tenho de terminar esse trabalho pra amanhã. E você sabe. Ele tem de estar, tipo, perfeito.

_ Jennifer, vem cá, olha pra mim. - ela pediu, levantando o meu queixo - Quanto café você tomou?

_ O suficiente para me fazer ficar em pé. - sorri - Não se preocupa. Não me atrapalha em nada.

_ Sei...hm...Jenni?

_ O quê?

_ Você sabe que dia é hoje?

_ Domingo. Claro que sei. Olha o tamanho do calendário ao lado da minha cama. - eu apontei um bloco cheio de anotações e círculos em volta de quase todos os trinta dias daquele mês.

_ Então creio que por um acaso você saiba que amanhã é feriado. Não haverá aulas, eventos, e nenhum tipo de entregas de trabalhos. Significa que você ainda tem uma semana para terminar este.

_ Ah, meu Deus! É sério? Eu perdi todo o dia com isso hoje. Eu poderia ter feito tanta coisa, eu...

_ Amiga, você precisa relaxar um pouco. E isso pro seu próprio bem.

_ Pode deixar. Vou fazer isso. - eu disse, jogando-me na cama ainda com a roupa que eu estava. Não importava quanto café havia em meu corpo, eu me sentia cansada demais para me dar ao luxo de não conseguir dormir. Puxei o prendedor do meu cabelo, deixando-o livre e joguei-o ao lado da minha cama, juntamente com a calça do moletom que eu vestia.

_ Eu moro com você e ainda assim sinto sua falta. Você não acha isso estranho?

_ Amanhã a gente faz alguma coisa, tá bom? Só me deixa dormir.

_ Jenni! Não! Para de agir assim, pare de guardar todo o sofrimento pra você mesma. Isso vai acabar te matando. Você acha que é saudável viver desse jeito? O que mais você comeu hoje além da cafeína e dessa merda que você chama de comida? - ela perguntou, levantando um pacote de bolachas da mesinha de estudos.

_ E eu me importo?

_ Você vai sair comigo hoje.

_ Tá louca? Você sabe que horas são?

_ Você sabe que dia é hoje?

_ É a droga de um domingo á noite! O que é que você tanto quer com hoje, hein? - perguntei irritada. Era o tipo de efeito que a falta de sono e de uma alimentação decente tinha em mim. Irritação constante.

_ É a 'droga' do seu aniversário de dezoito anos, querida. E você vai sair comigo agora. Levante-se. - ela disse, puxando o edredom com o qual eu estava enrolada.

_ Caramba... - eu gemi. Era isso. Eu esquecera meu próprio aniversário. - Por isso que meu celular estava vibrando tanto hoje.

_ E você nem atendeu?

_ Eu tava ocupada. E não queria falar com ninguém.

_ Já chega, Jennifer. Estou cansada de te ver assim. Você vai voltar a gostar de si mesma nem que tenha que andar comigo para qualquer lugar que eu for. - ela disse com uma voz irritadiça, enquanto vasculhava furiosamente o seu armário em busca de algo.

_ Vá sonhando.

_ Você quer apostar? - ela olhou-me nos olhos, levantando a sobrancelha.

A questão não era que eu não tinha vontade de melhorar, de seguir em frente tal qual nada tivesse acontecido. Mas por que eu deveria? Eu tinha sonhos lindos de um futuro brilhante, e os vira estilhaçando-se por duas vezes, duas perdas, dois momentos em que eu me percebi totalmente sozinha. E ninguém é capaz de viver sozinho. Então eu começava a me perguntar se seria sempre assim. Se eu perderia a todos que eu amava. Em que eu deveria me agarrar então? Em que sonho, em que futuro, se o que realmente importava na vida era aquelas pessoas que eu tinha por perto?

Eu sabia que era uma questão de tempo até eu me recuperar. Lembrava-me de cada estágio da dor da perda, e saberia que um dia a ferida se cicatrizaria. Mas então eu ficaria fria...De novo. E eu chegaria a conclusão de que não vale á pena se aproximar, amar demais se, no final, tudo se perde. E eu perceberia que toda aquela história de sonhos, a lista de objetivos, tudo o que cresci por todo o tempo que tive antes de entrar para a faculdade eram coisas fúteis demais. E, que, no final de tudo, não me faziam sentir-me completa. Não me faziam sentir-me mais forte e muito menos uma pessoa melhor do que qualquer um com quem eu convivia.

É. Tudo se cicatrizaria. E a pior parte disso é não mais me lembrar de como eu me sentia antes. É me lembrar somente da dor e do vazio e jamais conseguir abrir-me por inteiro novamente.

_ Vista esse vestido. Eu gosto dele. - disse Susie, estendendo o deslumbrante vestido que eu havia escolhido para ir no meu baile de formatura. Aquele que eu nunca fui. Aquele que trazia somente uma lembrança á tona. Connor. E a dor era maior quando ele estava no meio.

_ Esse não.

_ Por que você está chorando? - ela abaixou-se junto á cama, balançando os meus joelhos como se isso fosseme animar.

_ Não estou. - tentei disfarçar - Só que o vestido é brega demais. Não dá pra usar um vestido de baile numa festinha de irmandade.

_ Mas a festa é pra você. O meu irmão ajudou a organizar.

_ O ser irmão?

_ É.

_ Por quê?

_ Eu sei lá. Ele deve gostar de você.

_ Ele nem me conhece, Susie. E nem deveria. É perigoso demais se aproximar de mim. As pessoas que se aproximam demais...Morrem.

_ Para com isso, Jennifer! Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Você tem que tentar seguir em frente. Acha mesmo que seu avô iria querer te ver assim?

_ Eu odeio esse vestido. Tira ele da minha frente.

_ Ok. Já tirei, tá bom? Tive uma ideia. Use este. - ela disse, pegando um vestido branco de estilo casual de seu armário. - Você vai ficar bonita com ele.

_ Eu preciso mesmo ir?

_ Você tem dez minutos pra se arrumar. Eu te espero no dormitório do meu irmão. - ela saiu, fechando a porta atrás de si.

O sono me dominava. Eu me sentia exausta e arrasada e estava, é claro, com uma cara péssima. Mas eles tinham organizado uma festa para mim logo quando eu mesma havia me esquecido do meu aniversário. E eu estava fazendo dezoito anos. Não poderia simplesmente não ir. Não poderia dizer não àquela menina cheia de sede, de vontade de viver tudo intensamente. E ver Susie feliz até me fazia sentir-me melhor. Não sei se suportaria vê-la da forma que eu estava. Deve ter sido difícil para ela.

Depois de ter passado por um hall vazio da irmandade do irmão de Susie, bati algumas vezes na porta. Ao ouvir a voz dele pedido que eu entrasse, empurrei-a devagar esperando que dezenas de pessoas me recebessem com algumas taças de champagne ou algo do tipo. Era como eles faziam.

_ Oi. - ele sorriu. Diferentemente do que eu esperava, havia só ele e mais ninguém naquele quarto.

_ Ai, Drake. Desculpa! A Susie disse que...Eu achei que... Deixa pra lá. Continue o que estava fazendo. - recuei.

_ Ei, calma. - ele riu. - A Susie me obrigou a te segurar aqui por alguns instantes. Eles estão organizando as coisas ainda. A sua 'surpresa'.

_ Mas não é surpresa se ela já me contou. - eu sorri.

_ Sabe como ela é. - ele sorriu com um certo charme.

_ Mas eu acabei de passar pelo Hall e não tinha nada.

_ É no salão de festas. Fica no mesmo andar do Hall, porém mais nos fundos. Deve ser por isso que não viu nada.

_ Verdade. Bem, então eu vou pra lá.

_ De jeito nenhum! A Susie me mata se você chegar antes de tudo estar pronto. Então tecnicamente você é minha prisioneira até que ela deu o sinal. - ele brincou. Eu apenas sorri sem graça. A ideia de ficar sozinha no quarto com ele meio que me dava nos nervos.

_ Sente-se. - Drake apontou-me a cama - Você quer alguma coisa? Uma Coca-Cola talvez...?

_ Não, valeu.

_ Então tá. - ele sentou-se ao meu lado. - Você parece melhor.

_ Melhor? - arqueei a sobrancelha.

_ É. Melhor do que a última vez que eu a vi pela faculdade. Eu fiquei sabendo. Sinto muito mesmo. Se houver algo que eu possa fazer...Sabe? Pra ajudar.

_ Bem, acho que não é necessário dizer que ninguém pode fazer nada, não é mesmo? - eu disse, soando um pouco arrogante mesmo que sem querer.

_ Não. Não é necessário. É só que...Eu queria poder fazer algo. Você não merece ter de passar por esse tipo de coisa. Se estivesse sob meu alcance, juro que você hoje seria a menina mais feliz do mundo. - ele olhou calorosamente dentro dos meus olhos.

_ Eu...acho que vou querer aquele refrigerante. - gaguejei.

_ Tudo bem. Aqui está. - ele entregou-me.

_ Obrigada por ajudar a organizar a festa. A Susie me contou. Você não precisava. - eu disse, fitando o copo embaçado pelo gelo.

_ Eu não ajudei a organizar. Eu fiz a festa. - ele sorriu - E não foi nada. Eu gosto de organizar festas. E minha irmã gosta muito de você. Se a faz feliz, eu faço.

_ Foi bem legal da sua parte.

_ Não há de quê. - ele riu.

_ Você acha que eles já terminaram? Que eu já posso ir? - levantei-me da cama. Mas ele levantou-se bruscamente, segurando-me pela mão.

_ A Susie vai nos chamar quando estiver pronto. Fique. Não se preocupe. - ele puxou-me de modo que eu voltasse a ficar sentada na cama.

_ Tá.

_ Ah, e á propósito?

_ O quê?

_ Você tá linda.

_ Obrigada. - eu corei, sentindo os seus olhos fitarem aos meus. Eu não podia mandar nesse tipo de reação. Ele era um cara. E era bonito. E eu era uma garota. E me sentia mais solitária e carente do que nunca.

_ Feliz aniversário. - ele disse, num sussurro. E, nossa! Como os seus olhos me atraíam para perto dele. E a forma como ele sussurrava era tão sedutora que eu, pela primeira vez desde que estivera com Connor, senti falta de ter um homem ao meu lado. De ser cuidada e gostada. Fazia tempo que eu não tinha isso. Três meses sem nenhum contato. Três meses sendo rejeitada por ele. E aquele impulso de apenas aproximar-me mais um pouco, o suficiente para que nossos lábios se tocassem, estava longe de ser algo característico de mim.

_ Ai, desculpa! Eu não estou no meu estado normal. Digo, estou acordada á base de café, mas é como se meu corpo estivesse dormindo há muito tempo, e... - fui interrompida, com o seu dedo indicador pousando levemente sobre meus lábios. Ele riu do meu nervosismo e puxou minha nuca para perto dele.

E era tudo o que eu precisava para que todo aquele torpor fosse embora. Era como se eu, de repente, estivesse acordando de um transe, de um coma que durara meses. Eu não sabia exatamente o que eu sentia. Claro que não era amor. Mas era tão bom. A forma como a pele quente de seu rosto tocava a minha, como a sua mão tocava minha cintura por cima da blusa, como a sua língua percorria a minha boca, enchendo-a daquele frescor de menta, me isentava de qualquer tipo de pensamento, fazendo-me apenas querer estar lá e ponto final. Não havia 'mas' e não havia 'se'.

Os meus dedos percorriam a sua face e seus cabelos, sentindo como a sua temperatura ia aumentando com o passar do tempo.

_ Diga de novo. - sussurrei.

_ O quê?

_ Que eu estou bonita.

_ Jenni, você é linda. - ele enfatizou o 'é'. E eu sorri. E me aproximei novamente.

E veio aquela sensação. Aquela que eu imaginei que só seria capaz de sentir com Connor. Não a sensação da falta de ar, das borboletas no estômago, da insanidade tomando conta de mim. Mas aquela outra. Aquele que eu sentia cada vez que sua pele quente tocava a minha. Os choques. Os arrepios. Eu sentia tudo aquilo novamente e com outra pessoa. Eu provavelmente deveria me sentir mal por isso. Mas eu estava pensando muito nisso naquele momento. Pra ser sincera, eu não estava pensando em nada. Eu apenas sentia. Eu sentia o frescor do vento da noite entrando pelas persianas do quarto, eu sentia o seu perfume forte, seco e marcante, sentia suas mãos puxando a minha cintura de forma que eu me deitasse na cama. E eu não tachei-me de impulsiva ou inconsequente. Eu apenas estava lá. E não importava com nada daquilo.

Então, de repente, a porta se abriu com um estrondoso ruído. Nos olhamos sobressaltados, ainda sem entender o que estava acontecendo, e sentei-me rapidamente, ajeitando a minha roupa da forma como era possível.

_ Oh, merda! - disse Susie, do lado de fora do quarto - Eu deveria ter batido. Desculpa. - e a porta de fechou novamente.

_ Por favor, me fala que isso não aconteceu.

_ Isso o quê? Ela ou...Nós?

_ Tudo. Tá bom? Tudo! - eu disse, assustada não só com a situação, mas comigo mesma. Com os sentimentos, as sensações todos incontroláveis. Eu me perguntava até onde seria capaz de lidar com aquilo.

_ Hey! Fica calma. Não tem nada demais o que aconteceu. Ela não vai contar pra ninguém. Nem eu.

_ Desculpa. Foi grosseria da minha parte. - fitei o chão.

_ Tudo bem. - ele sorriu, ajeitando uma mecha do meu cabelo. - Você que ir pra sua festa?

_ Quero...

_ Então vamos. - ele estendeu-me a mão.

Ao contrário do que eu pensava, Susie não ficou estranha comigo. Muito pelo contrário. Agiu como se nada houvesse acontecido. Era uma das coisas que eu gostava nela. As coisas nunca ficavam estranhas, eu sempre me sentia bem tendo-a por perto. Assim que apareci no salão de festas - injustamente enorme, considerando que o meu dormitório comum demais sequer tinha um - dezenas de pessoas gritaram 'surpresa' e sorri fingindo estar mesmo surpresa. Eu não conhecia a maior parte deles. Mas era bom saber que eles estavam ali por mim. Eu podia até imaginar Susie e Drake chamando as pessoas para o aniversário de uma 'desconhecida' que não estava em seus melhores dias e, por isso, precisava de gente por perto. Então por isso tentei sorrir e demonstrar-me feliz ao máximo, ainda que estivesse excessivamente cansada. Mas apesar de tudo, eu não me sentia tão deprimida como nos últimos dias. No fim das contas, fora Drake quem me dera o melhor presente: a sensação de estar 'viva' de volta.

Já estava quase amanhecendo, quando fui de braços dados com Susie até o nosso dormitório, apesar da insistência de Drake para que dormíssemos em seu quarto. Arrastei-me até a pia, jogando água no meu rosto violentamente, na tentativa de tirar toda a maquiagem o mais rápido possível. Por fim, joguei as as roupas que vestia no chão, enfiando-me embaixo do edredom. Exausta. Eu poderia dizer que dormi como uma pedra, sem sonho algum. E realmente era disso que eu precisava. Mas as coisas nem sempre acontecem como devem ser. Acabei por ter um sonho estranho e sem sentido, mas que fez com que eu acordasse apenas duas horas depois de ter me deitado e não conseguisse dormir mais.

Era uma garotinha de pele muito clara, tão clara quanto os seus finos cabelos lisos, cortados até a altura dos ombros. Tinha o rosto angelical de uma criança de três ou quatro anos, o que contrastava com seus grandes e penetrantes olhos negros. Inconsciente de estar sonhando, eu não entendia muito bem o por quê de estar ali, naquela enorme floresta de mata fechada, onde a única luz vinha de raios de sol que conseguiam penetrar entre as milhares de folhas. A menina apenas olhava-me nos olhos, tocando-me a face com suas pequeninas e macias mãos. Seus olhos chamavam muito a atenção, pareciam transmitir medo, mas o seu rosto me era familiar. Ela apenas contemplava-me em silêncio.

Incrível era sua semelhança comigo. Lembrei-me de um retrato que eu guardava de lembrança dos meus pais, onde eu tinha por volta de cinco anos, e havíamos resolvido tirar fotos perto de um brinquedo em um parque que eu gostava. Era tão parecida. Foi então que eu tive alguns flashes de consciência. Eu estava sonhando. Mas por qual motivo eu sonharia comigo mesma pequena? Dizem que o que sonhamos á noite é apenas o resultado de imagens e pensamentos que ficam em nosso subconsciente. Talvez o fato de eu sonhar comigo mesmo mais nova, fosse resultado do meu desejo de voltar ao tempo e ter de volta tudo aquilo que eu amava.

Mas se aquela garota representava o meu passado, por que aqueles olhos tão negros se os meus eram azuis? Qual poderia ser o sentido daquilo? Será que toda aquela escuridão representava tudo o que se passava dentro de mim? Seria aquilo um aviso alertando-me que, caso eu não mudasse meu comportamento, as coisas poderiam ficar ruins?

O som das folhas movimentando-se interrompeu os meus pensamentos, e a percepção da enorme e medonha floresta á minha volta levou embora todo e qualquer flash de consciência. E comecei a ficar com medo. O vento ficava cada vez mais frio, fazendo-me arrepiar. O sol começava a ir embora, levando consigo os seus aquecedores raios e deixando entrar a escuridão. E a menina continuava ali. Fitando-me.

_ Você sabe onde nós estamos? - perguntei finalmente.

E então os seus olhos deixaram de transmitir medo. E sua face deixou de transmitir calma. Sua mãos soltaram-se do meu rosto e ela começou a rir infantilmente. Era uma risada gostosa, de criança. Mas, por algum motivo, fez com que os arrepios voltassem.

_ Você sabe como sair daqui? - sussurrei - Estou com medo.

A garotinha aproximou-se então, até que os seus lábios frios tocassem meu ouvido. Tudo parecia tão real, tão passível de fazer sentido. Mas ainda assim eu não conseguia entender.

_ Cuidado com o que você deseja, Jenni. Pode acabar se realizando. - ela sussurrou.

_ Como assim? O que eu fiz de errado? - perguntei, apavorada. Mas a garotinha apenas riu, sem sequer preocupar-se com o medo que eu sentia.

_ Você sabe. Você desejou tanto, tanto.

_ O quê? O quê eu desejei?

_ Juntos para sempre. - ela sussurrou antes de levantar-se e sair correndo, desaparecendo entre as árvores.

E então eu levantei-me de uma vez, para seguí-la e tirar satisfações do que ela dizia. Mas eu já não estava mais naquela floresta, e sim no meu quarto. Susie dormia na cama ao lado, abraçada a um travesseiro, e a luz do sol entrava irritantemente pelo quarto, anunciando ser oito horas da manhã, o que não era nada bom considerando que havíamos chegado da minha festa apenas há duas horas atrás. E, por Deus! Era feriado. O único dia em que eu poderia dormir até mais tarde - e eu precisava daquilo mais do que ninguém - e eu sentia a insônia tomando conta de mim, provocada pelo susto e pela onda de pensamentos que começavam a povoar minha mente.

Sonhar comigo mais nova, o desejo de voltar no tempo, só trazia mais dor e pessimismo para os meus pensamentos. Me fazia lembrar quando eu era apenas uma criança que tinha pais para protegê-la, amá-la e levá-la para passear em parques de diversão. Peguei o retrato que tinha á cabeceira da cama e acariciei-o. Eu me lembrava perfeitamente daquele dia. O parque acabara de abrir e eu insistira irritantemente até que meu pai prometesse que iríamos no fim de semana. E então eu era só sorrisos. E como eles se divertiam com isso...! Eu corria pelo parque de mãos dadas com os dois, maravilhada por nunca ter visto um parque tão grande como aquele em Londres. Eu queria experimentar a todos os brinquedos, provar todos os doces, e ficava realmente irritada quando minha mãe pedia para que sentássemos um pouco para descansar. Eu sempre tive aquele enorme espírito de liberdade. Mas eu nunca imaginei o quão ruim seria ter essa 'liberdade' sem ter as pessoas a quem eu amava por perto. Jamais imaginei que a liberdade que eu ganharia significaria também solidão.

As palavras da garotinha estavam fixas em minha memória tão claramente que eu poderia até ouví-las de novo e de novo. 'Cuidado com o que deseja'. Mas se o meu desejo era voltar no tempo e ter os meus pais e meu avô de volta, isso era totalmente impossível de se realizar. Então por que eu tinha que tomar cuidado? ' Juntos para sempre' . Só havia uma forma de estar junto deles novamente. E eu nem estava certa se era mesmo possível. Mas era única. Com a minha morte. Então, o que aquilo significava? Que eu ia morrer?

E não era só isso. Tinha outra coisa que me incomodava. Talvez fosse a mais forte delas. Aqueles olhos negros da menina, aquele mistério... Características que me faziam lembrar de uma pessoa em especial. Connor. Era óbvio. Apenas mais uma mensagem do meu inconsciente. Meus dois maiores desejos. E outro turbilhão de lembranças foi jogado em minha mente fraca e cansada. A primeira vez na qual o vi no colégio, conversando com os outros garotos. A forma como ele me olhou pela primeira vez, naquele baile. Como o simples contato com seu corpo, nas danças em que ele me conduzia, já me traziam aquela deliciosa sensação de entrega. O nosso primeiro beijo, quando tudo envolta sumiu e tudo o que e conseguia perceber era seu calor, seu toque, seu cheiro e seus lábios em contato com os meus. A dor e o vazio que eu senti por todos aqueles meses no quais tivemos de ficar longe. A forma louca como meu coração disparou quando o vi naquela festa, no dia em que ele voltara, e percebi que o tempo não diminuíra em nada o que meu coração sentia. Lembrei-me de cada dia em que passamos juntos, aproveitando-nos, conhecendo-nos, antes que eu fosse embora, como se fosse a última vez em que nos veríamos. E a lembrança mais clara, e que ainda me fazia sorrir: a forma tão doce e carinhosa como ele agiu comigo quando me entreguei para ele. Como observei-o sob a luz do sol no outro dia, e tudo o que eu sentia era um amor infinito, totalmente desprovido de mágoa ou medo. E a forma como ele sorriu ao acordar e surpreender-se comigo olhando-o daquela forma.

De repente, nada mais fazia sentido. Eu não entendia como conseguira ficar tanto tempo longe, morando ali naquele quarto de dormitório, sem sequer ouvir sua voz ao telefone. Não entendia como conseguira agir tão friamente com aquele homem no enterro do meu avô, se todo o meu corpo pedia que eu me lançasse em seus braços e chorasse toda a minha dor. Não entendia de onde tirara forças para pegar aquele trem de volta para Liverpool, se tinha a plena consciência de que não voltaria tão cedo para Londres. Não fazia o menor sentido, se o amor que eu sentia era tão infinitamente maior que a mim mesma, se era tão...real. E como eu conseguira estar com outro homem no dia anterior, como eu pude sentir aquelas coisas sem sequer me lembrar de Connor? Não parecera ter nada demais na hora, mas de repente eu me sentia a pior pessoa do mundo. Não era justo que Connor estivesse tão longe, que nosso futuro juntos fosse tão improvável de acontecer, se eu o amava tanto, se eu tinha tanta certeza daquele sentimento. A saudade foi tomando conta de mim, aos poucos, e as lágrimas que eu evitava chorar há tanto tempo cansaram de ser evitadas.

_ Jenni? - murmurou Susie, levantando-se devagar e preguiçosamente de seu travesseiro - Você já tá acordada? Que horas são?

_ Oito e quinze. - eu disse, tentando disfarçar a voz de choro, limpando rapidamente as lágrimas com a palma da mão, ainda que elas implicassem em continuar caindo. Oito e quinze. Então o que parecera ser horas e horas de reflexão haviam sido apenas quinze minutos. Fora tempo o suficiente para abalar todo o meu mundo. De novo.

_ E por quê você tá acordada? Hoje é feriado. A gente pode dormir até mais tarde. E eu ainda estou pregada. Acho que vou dormir até umas três da tarde. - ela riu.

_ É... -murmurei.

_ J.? Você tá chorando?

_ Não. Eu estou dormindo. Me deixa quieta. - virei bruscamente para o outro lado da cama, fingindo dormir.

_ Você tá chorando sim. - Susie levantou-se, andando até a minha cama e agachando-se ao meu lado. Outra característica típica dela: ela não desistiria. Não até que eu me abrisse para ela. Deve ter sido isso um dos fatores de eu gostar tanto de estar com ela. Lembrava a Grace em muitos aspectos.

_ Não estou. É sério.

_ Então olha pra mim.

_ Satisfeita? - perguntei, olhando-a de cara feia.

_ E esses grandes olhos inchados? E esse nariz vermelho?

_ É sono.

_ Não é nada.

_ Me deixa, tá bom?

_ Hey. O que foi que aconteceu?

_ Não foi nada.

_ Pra fazer você estar acordada no estado em que você se encontra foi coisa muito séria.

_ Lembranças...

_ Eu sinto muito. - ela acariciou os meus cabelos. - Não sei como é perder um familiar, mas deve ser muito triste. Eu queria poder fazer algo.

_ Você já faz. - segurei sua mão - Você tá sempre aqui pra mim. É uma ótima amiga. É o suficiente.

_ Que bom. - ela esboçou um sorriso - Mas tem outra coisa, não tem?

_ Você me conhece direitinho.

_ O que é? Você vai me contar.

_ Connor....Eu sinto falta dele. Dói muito estar longe assim.

_ Eu não acredito que você tá assim por causa dele. Ele é um idiota. Ele foi todo frio e egoísta quando você perdeu seu avô. Ele sequer foi ver você quando você voltou para Londres.

_ Não fala dele assim. Você mal o conhece. Ele não é desse jeito sempre. Tem um outro lado. O lado pelo qual eu me apaixonei.

_ É que...Você tava se dando tão bem com meu irmão. Eu achei que...

_ Susie...Aquilo foi um erro.

_ Bem, ele é uma pessoa maravilhosa. E ele está presente. Ele estará presente nesses anos que você passará aqui. Você não pode simplesmente passar cinco anos esperando alguém que você nem sabe se ama você da mesma forma.

_ Eu sei. Mas eu o amo do mesmo jeito. É mais forte. Eu não posso mandar nisso.

_ Mas você pode se permitir viver outras opções.

_ Ele sempre foi a única opção.

_ Você vai mudar de ideia. Eu sei disso. Você já é bem grandinha, Jenni. Sabe o que é melhor pra você.

_ Eu não sei de mais nada. Nada mais faz sentido. - eu disse, virando-me novamente na cama, esperando que ela fosse embora. Eu estava irritada. Não era com ela, eu sabia que ela só queria o meu bem. Era com a situação. Era com o fato de que tudo o que ela dizia tinha um 'quê' de verdade. E, por mais que eu tentasse evitar, eu sabia que ela estava certa.

Melissa J
Enviado por Melissa J em 23/03/2015
Reeditado em 25/03/2015
Código do texto: T5180881
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