Mais que a Minha Própria Vida - Capítulo 36

Como prometido, aí vai mais um capítulo :)

Quero agradecer pelos comentários da Wanessa, Manu e Anne. Obrigada pelo apoio e carinho de sempre meninas. Vocês sempre me estumulam a nunca querer parar de escrever.

E quero dizer que sinto falta de certos leitores que sempre comentavam, como a Beatriz Aurich, Luana Monteiro, José Luciano, Letícia Escobar, Liz Gilbert, entre outros. Vocês abandonaram mesmo ou viraram fantasmas? Sinto falta dos comentários de vocês. :/

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Eu não dormi nada bem naquela noite. Fora um sono agitado e cheio de sonhos surreais. Eu me sentia estranha e sentia um vazio enorme por estar em lugares tão medonhos e não ter a presença daquela garotinha de olhos enigmáticos ao observar-me. De repente eu estava num hospital, no último andar, debruçada numa espécie de sacada que tornava visível todos os andares abaixo daquele. Pessoas andavam de um lado para o outro, todas vestidas de branco. Não era possível ver os rostos de nenhuma delas. Ela não tiravam os olhos do chão nem mesmo para cumprimentar-se.

_ Onde eu estou? E onde está você? Eu ainda quero respostas. - sussurrei com a esperança que a garotinha aparecesse.

_ Mamãe! - uma criança berrou de forma desesperada. O som vinha do andar de baixo mas, desde que a garotinha gritara pela primeira vez, tudo ficara escuro. - Mamãe, por favor, me tira daqui!

_ Alguém ajude essa menina. - gritei. - O que é que está acontecendo? Ninguém vai ajudá-la?

_ Porque iríamos? Está acontecendo exatamente como tem de ser. - disse um homem de jaleco branco, que postou-se ao meu lado.

_ Mamãe! - a criança berrou mais uma vez. - Me desculpa! Eu prometo não assustar mais você. Eu só estava brincando, mamãe. Eu vou proteger você dos sonhos ruins. Vou te proteger de tudo.

Meu corpo estremeceu quando percebi de quem se tratava. Era a garotinha dos meus sonhos. Ela gritava em tamanho desespero que era de cortar o coração. Ela estava ferida? O que é que estavam fazendo com ela?

_ Socorro! Me tire daqui,mamãe. Eles estão me machucando. Eu estou com tanto medo.

_ Eu...Eu vou tirar você daí. - eu gritei, descendo por uma longa escadaria branca que me permitia descer dois andares. Isso dava no que seria o primeiro andar. E eu tinha certeza que os gritos vinham do térreo.

_ O que está fazendo, menina? - perguntou-me uma enfermeira, que trazia dezenas de utensílios médicos afiados e ameaçadores em cima de um carrinho.

_ Você sabe como eu faço para descer até o térreo?

_ Ah, querida. - ela sorriu - Isso não é possível. Sinto muito.

_ Como assim não é possível?

_ Não existe nenhuma escada até o térreo. Se você vai até lá, bem, você não volta.

Desvencilhei-me da enfermeira, correndo até a próxima sacada. As imagens ficavam mais claras se vistas daquele lugar. Então eu a vi. Aquela menininha, antes tão corajosa, estava sentada ao chão, agarrada às suas pernas com toda a força. O seu rosto trazia uma expressão de pânico, com toda aquela palidez substituída pelo rubor de quem chora por horas e horas. Os seus olhos estavam tomados por um rio de lágrimas. Até que ela me viu.

_ Mamãe?

_ Eu não sou sua mãe, querida. - sussurrei. - Eu não sei onde ela está, mas não sou eu.

_ Você não acha que a semelhança que existe é tão óbvia que quando você fita o meu rosto é como se estivesse olhando-se no espelho? - ela disse, ficando séria de repente.

_ Bem, eu...

_ Você ainda tem alguma dúvida de que eu sou parte de você?

_ Eu pensei que...Que...Que você fosse um fruto da minha imaginação. - gaguejei.

_ Por enquanto eu sou. E vou continuar sendo se você não me deixar ser mais do que isso. Mas você vai deixar...Não vai mamãe?

_ Jennifer - pensei, fechando os olhos - Não enlouqueça com isso. É só um sonho.

_ Por favor, mamãe, me ajuda! - ela gritou mais uma vez. Mas o grito pareceu mais histérico do que os anteriores. Como se, dessa vez, fosse uma mistura de medo com dor.

Olhei para a garotinha mais uma vez, e percebi que o chão do térreo começava a ser coberto por uma fina camada de sangue. O seu rosto angelical se contorcia de dor, enquanto ela chorava e repetia 'não, por favor', 'por favor,não'. Mas ninguém aparecia para tirá-la de seu sofrimento.

_ Não deixa eles me machucarem, mamãe! - ela choramingou - Eu prometo ser boazinha. Eu prometo não chorar de noite, prometo não causar muita dor a você.

_ Mas...Não sou eu que estou provocando isso.

_ Mamãe, eu... - ela começou a dizer, quando o nível de sangue começou a aumentar abruptamente, cobrindo até a metade de seu ombro. Ela arregalou os olhos e soltou um grito alto e estridente. - Me salva,eu estou com tanto medo! Eu não aguento mais, mamãe. Eu não sou tão forte igual você. - ela sussurrou, fazendo eu me sentir como se tivesse acabado de levar uma violenta facada ao coração. Tomada pelo desespero, comecei a gritar também, tentando, de todas as formas, achar um jeito de descer até o andar de baixo.

_ Alguém a ajude, por favor! Alguém tira essa garotinha daí!

_ Foi sua decisão, menina. - disse o mesmo homem de jaleco branco que havia aparecido anteriormente - Não há mais como voltar atrás. Mas não se preocupe. Está acabando.

_ Não! Eu nunca decidi nada disso. Vocês estão loucos. Parem de torturá-la.

_ A escolha foi sua. Está no contrato.

_ Que contrato? Eu não quero que vocês façam mal a ela! Tirem ela de lá agora! Tirem ela de lá ou eu mato você. Eu mato todas vocês. - gritei, enquanto lágrimas de tristeza, raiva e medo embaçavam meus olhos.

_ Você está fora de controle. O efeito do anestésico está passando? Vou chamar alguém pra te sedar novamente. - ele disse, segurando educadamente o meu braço.

_ Tira essas mãos nojentas de mim! Eu não quero ser sedada. Eu só quero que vocês parem de machucá-la. Como vocês podem ser tão cruéis?

_ Nós apenas estamos fazendo nosso trabalho. Tem certeza que o efeito da anestesia ainda não passou? - ele perguntou, apontando para minha barriga.

Eu usava uma blusa branca enorme e fina, toda feita de algodão, exatamente como se usam os pacientes que serão submetidos a cirurgias. Porém, a parte do tecido que tocava o meu ventre estava coberta de sangue. Coloquei as mãos em cima daquela enorme mancha, apertando forte a minha barriga para que o sangue parasse mas, quanto mais eu apertava, mais sangue saía de mim.

_ Por favor, não! - sussurrei, caindo de joelhos no chão sem tirar as mãos da minha barriga. O médico acariciou as minhas costas e uma enfermeira esticou o meu braço, pegando uma seringa e inserindo todo o conteúdo do frasco em minha veia. Eu me sentia tão fraca que não pude impedir. Tudo começou a ficar escuro. Amedrontada, tentei gritar, como última tentativa de esforço.

_ Tirem as mãos as mãos de mim! - veio o grito tão forte que fez com que minha garganta doesse.

_ Jenni? - perguntou uma voz conhecida. Abri os olhos devagar e percebi que estava de volta ao meu quarto. O sol brilhava na janela. Susie estava parada em minha frente, enrolada em uma toalha e pentando os cabelos molhados com as mãos. Eu estava suada a ponto do tecido da minha roupa colar ao meu corpo. - Você estava tendo um pesadelo?

_ É. Acho que sim.

_ Foi um grito tão alto que até acho que os seguranças do campus virão bater à nossa porta.

_ É. Desculpe.

_ Tudo bem. Já estava mesmo na hora de você acordar, dorminhoca.

_ Quantas horas?

_ São oito horas.

_ Ah! Não dava pra marcar isso pra outro dia? Quero pensar melhor.

_ Outro dia? Esse cirurgião é super requisitado. Você teve foi muita sorte dele ter podido atender você assim tão rápido. E eu só consegui porque ele é muito amigo da minha família. Mas não vamos brincar com a sorte, pode não ser tão fácil remarcar. E, você sabe, quanto mais cedo você acabar com isso, melhor.

_ É que...Eu tive um sonho meio assustador. Com médicos sanguinários e tal.

_ Eu também tinha pesadelos com médicos...Quando eu tinha seis anos! - ela riu.

_ Não foi como o meu.

_ Jenni, os médicos de lá são super carinhosos e atenciosos. E eles sedam você desde o primeiro segundo. Quando você acordar já vai ter acabado e você nem vai perceber.

_ Mas é que...A garotinha estava no sonho. Parecia que ela queria me dizer algo. Ela me chamou de...de 'mamãe'.

_ Amiga, - ela disse, sentando-se na beirada da cama - Você tem que entender que essa menina foi criada pelo seu subconsciente para que você se sentisse menos sozinha. Isso acontece, a mente nos prega peças. Não que dizer que seja real.

_ E se ela realmente for minha filha?

_ Ela não é. Você a vê desde que nem imaginava estar grávida. E todas as coisas que ela já te disse eram lembranças das conversas que você já teve com aquela sua amiga. Você mesma me disse isso. Ela não é real, Jenni. Não se deixe levar.

_ Eu estou com medo.

_ Não fique. Eu vou estar ao seu lado. E vai ser tão simples e rápido que você logo vai ver o quanto esse medo todo era besteira.

_ Eu espero que sim.

_ Vá se arrumar. Eu vou até o quarto do meu irmão pegar a chave do carro dele. Não se preocupe, ele não vai junto.

_ Acho bom mesmo.

A clínica não se parecia em nada com a do sonho. Era pequena, discreta, assemelhando-se mesmo a uma casa comum. Acima da porta, uma inscrição de letras prateadas com os dizeres 'Clínica de Ginecologia'. Susie cumprimentava as recepcionistas como se já as conhecesse a anos - e era certo que já conhecia.

_ Como você está grande, querida! - disseram elas - Como estão os seus pais?

Naquela pequena sala bege, com um sofá de quatro lugares em um canto, uma cesta de revistas ao lado e uma pequena e velha televisão à frente, Susie e eu esperamos por cerca de 15 minutos, antes de sermos chamadas. Susie estava calma, ouvindo músicas em seu mp3 e cantando junto. Eu não parava de pensar no sonho. No quão errado era aquilo que eu estava prestes a fazer. Mas não havia outro jeito. Eu mal tinha a quem recorrer.

Ao nosso lado havia uma garota que parecia ter por volta dos dezesseis anos. Tinha os cabelos longos presos em um coque e roía sem parar a unha pintada de um vermelho desbotado, imersa em seus próprios pensamentos. Sua perna balançava-se descontroladamente, deixando transparecer toda a sua agonia. Eu não me sentia muito diferente daquilo.

_ Jennifer Summers? Pode entrar, querida. - disse a enfermeira.

_ Eu posso entrar com ela? - Susie pediu.

_ Desculpe, querida. Não pode. O médico pediu que entrassem somente pacientes.

_ Tudo bem. Jenni, eu estou bem aqui te esperando, tá? - Susie disse - Não se preocupe, vai dar tudo certo. Depois que acabar nós vamos sair um pouco pra esfriar a cabeça.

_ Mas... Você prometeu que ficaria ao meu lado.

_ Eu estou bem aqui. Na sala ao lado.

_ Certo. - murmurei.

_ Boa sorte, tá? - sussurrou a garota que estava sentada ao nosso lado, apertando forte a minha mão.

_ Pra você também. - eu me levantei.

Depois da recepção haviam corredores enormes, cheios de portas, provando que a clínica superava as aparências em questão de tamanho. A recepcionista acompanhou-me até uma porta, entregando-me uma sacola com uma espécie de tecido branco dentro.

_ Vista isso e depois vá até a sala número sete, certo? - ela disse, abrindo a porta e revelando um pequeno banheiro.

_ Certo.

O conteúdo do saco não era nada menos do que as mesmas vestes cirúrgicas do meu sonho. Aquilo não deveria me desesperar, era absolutamente normal que eu tivesse de vestir aquilo antes de ser submetida a uma cirurgia. Mas desesperava, pois fazia com que o sonho se tornasse cada vez mais real.

Claro que relutei em continuar com aquilo, pensando em todas as possibilidades de fugir dali sem ser vista. A janela do banheiro era pequena mas, talvez, com um pouco de esforço, eu conseguisse sair por ela. Mas por que é que eu faria aquilo? Eu não estava sendo obrigada a estar naquele lugar. Eu havia ido por pura espontânea vontade e permanecia lá igualmente por espontânea vontade...Não era? De certa forma sim. Mas todos os fatos passados que me levaram, no fim das contas, àquele lugar e àquela situação, não haviam de forma alguma sido frutos da minha vontade. Eu era vítima daquela situação e ainda estava levando outra pessoa comigo. Uma pessoa frágil, inocente, incapaz de se impor, e que não tinha culpa alguma de nada daquilo.

Haviam números nas portas, facilitando que eu encontrasse facilmente a de número sete. A porta anterior se encontrava aberta, e era possível ver uma menina sentada em uma maca, com um pouco de sangue nas pernas e chorando muito. Mas não parecia um choro de dor. Não era. Era de arrependimento. Ao perceber minha presença, um médico saiu da sala, fechando a porta atrás de si mesmo.

_ Está perdida, menina?

_ Bem...Eu...Estou procurando a sala sete.

_ É logo ali. - ele apontou para a porta de número sete.

_ Sim. Certo. - eu desviei de seus olhos e entrei.

Era uma sala espaçosa, toda pintada e decorada de cores claras, com uma janela que permitia grande iluminação e revelava um bonito jardim. Havia uma mesa em frente da qual um médico jovem e bonito estava sentado, e duas cadeiras acolchoadas próximas à mesma.

O médico sorriu cordialmente ao me ver, levantando-se e caminhando em minha direção.

_ Jennifer Summers?

_ Sim. Sou eu.

_ Eu sou o doutor Humbert. Prazer em conhecê-la. - ele estendeu-me a mão - Seja muito bem vinda. Sente-se, por favor.

Haviam vários quadros espalhados pela sala. Eram bonitos, retratando mulheres e paisagens exóticas. Um pouco atrás de onde estava sentado o médico havia uma cortina branca e transparente, que revelava o sombreado do que havia atrás dele: uma maca e uma mesinha com instrumentos cirúrgicos.

_ Você é amiga da Susie Salmon, não é? Eu sou o médico dela. Ela pediu que eu atendesse você também. Como ela está?

_ Ela está bem.

_ Que ótimo. - ele sorriu - Vocês já estão na faculdade, não é? Como crescem rápido!

_ É. - murmurei, fitando ao chão. Ele era educado e cordial. Mas eu não podia ignorar o que ela fazia e muito menos a situação. Eu não sabia como agir.

_ Você está nervosa?

_ Um pouco.

_ Quantos anos você tem?

_ Acabei de fazer dezoito.

_ Querida, não vou mentir pra você. Uma vez que eu começar isso, não tem volta. Então você tem de estar certa do que está fazendo. Se houver outro jeito, se você achar que pode ter esse bebê agora sem problema algum, pode voltar atrás.

_ O problema é esse. Eu não posso. Eu não tenho ninguém e mal tenho condições de cuidar de mim mesma.

_ Então tente ficar calma. Pense que é o melhor que você pode fazer a si mesma e até para o bebê. Você ainda é uma menina. Está nova, ainda tem tanto a fazer na vida. Pode terminar a faculdade e seguir o seu sonho. Pode conhecer outro garoto, casar-se com ele e aí então começar a constituir uma família. O que é que você tem a oferecer para um filho agora? Eles precisam muito mais do que força de vontade. Precisam de estabilidade e boa educação. Como você poderia fazer isso?

_ Eu entendo os benefícios que isso pode ter pra mim. É como uma nova chance de fazer as coisas certo daqui pra frente. Mas como isso pode ser bom para o bebê? Matá-lo?

_ É melhor acabar com tudo agora do que vê-lo sofrer mais para frente.

_ Não parece certo.

_ A escolha é sua, Jennifer. Você tem que tomar as decisões de acordo com as circunstâncias. Quando elas são ruins, não há forma de tomar somente boas decisões. Circunstâncias ruins levam à medidas extremas.

_ Eu só queria que... As circunstâncias melhorassem. Claro que eu já pensei em ter um bebê. Mas não desse jeito. Eu me imaginava sendo uma boa mãe, tendo momentos felizes. E olha só onde eu estou! Prestes a matar o meu primeiro filho. Que grande merda de mãe eu sou.

_ Você é uma criança ainda. Não é culpa sua.

_ É culpa minha! - eu bati na mesa mais forte do que eu gostaria - Desculpa. - eu me encolhi na cadeira.

_ Decida-se.

_ Acho que o fato de eu estar aqui já transparece a minha decisão. - sussurrei.

_ Vai ficar tudo bem, querida. Venha. Deite-se aqui. - ele apontou para a maca. Eu caminhei até ela e me deitei.

_ Eu vou preparar a anestesia. Você tem medo de agulha?

_ Não.

_ Ótimo. Eu aplicarei em você e você se sentirá sonolenta. Logo estará dormindo e, quando acordar, tudo estará acabado.

_ Tá bom. - eu disse, fechando os olhos.

Ouvi sons de objetos metálicos tocando-se e senti minhas mãos gelaram. O medo tomava conta de mim, mas eu não poderia desistir logo naquela hora...certo? Até que alguém sussurrou no meu ouvido.

_ Mamãe!

Abri os olhos com o coração a mil. Eu já estava começando a ficar preocupada. Eu viraria uma daquelas pessoas que não conseguia distinguir o que é real do que não é? Até quando aquela garotinha me atormentaria? Era tão difícil entender que eu não podia ser mãe dela?

_ Você está tensa, querida?

_ Um pouco...

_ Não se preocupe. Já estou preparando sua anestesia. Em questão de segundos você se sentirá mais calma. Tente fechar os olhos e relaxar um pouco.

Mas, assim que fechei os olhos, senti minha espinha gelar. Todas as cenas assustadoras do meu último sono começaram a passar como um filme em minha mente e me matava ver aquela garotinha - que de certa forma era minha, pois eu a inventara - sendo machucada por aqueles médicos inescrupulosos. Me dava uma horrível sensação de vazio vê-la ali, fora do meu alcance, chorando, gritando por ajuda sem que eu nada pudesse fazer. Relembrar das cenas me fazia pensar no quão estranho seria quando ela desaparecesse dos sonhos. Eu não ouviria mais as suas risadas, não a veria mais me observando com aqueles grandes olhos negros que eu amava - e como poderia não amar? - porque me lembravam o único homem por quem eu me apaixonei de verdade. Eu não escutaria mais a sua voz doce. Eu estava prestes a submetê-la aos mesmos tipos de tortura que eu vira no sonho. Como eu poderia? Parar para pensar dessa forma só me levava a perceber o quanto eu precisava dela. Eu sentia como se ela já fosse parte de mim. Se eu tirasse, seria como se me fosse arrancada uma grande parte do que eu mesma já era. Será que era aquilo o que chamam de amor de mãe? Como poderia? Eu só tinha dezoito anos.

" _ Foi sua decisão, menina. Não há mais como voltar atrás. Mas não se preocupe. Está acabando." - disse o médico da lembrança do sonho.

Não, não estava acabando! Eu não queria mais fazer aquilo. Eu queria que aquele médico ficasse bem longe de mim e da minha filha. Como ele podia ser tão cruel? Eu não era como ele. Não poderia ser. Ela não tinha culpa de nada. E ela era...Minha! Eu fui abandonada por todos os meus familiares. Eu a abandonaria também? Seria um ciclo vicioso sem fim?

_ Vou aplicar a injeção, tudo bem? Você vai sentir uma pequena picada. - o médico segurou o meu braço gentilmente. Mas, de olhos fechados, aquele voz parecia vir daquele médico de olhos vazios. E eu não queria que ele me tocasse. Eu desejei estar bem longe de um lugar como aquele. Desejei voltar no tempo e esquecer tudo aquilo.

Então meu corpo obedeceu. 'Tire as mãos de mim!', eu gritei, empurrando o braço do médico com toda a minha força e levantando-me da maca em um só pulo. Meu coração estava á mil e as imagens de tudo o que acontecia começaram a se passar em câmera lenta. Percebi o médico, inerte, olhando-me com expressão assustada e segui com os olhos o caminho até a porta, antes de sair correndo por ela. Portas foram se abrindo pelo corredor, com médicos e enfermeiras curiosos pelo barulho, mas eu tentava pensar somente em sair dali. Quando finalmente cheguei à recepção, Susie se levantou com uma expressão confusa e, sem sequer explicar-lhe, saí pela porta, encostando o meu corpo na parede de fora do hospital enquanto recuperava o fôlego.

_ Você é louca ou o quê? - Susie perguntou, indignada, parando em frente a mim.

_ Eu não posso fazer isso. Não posso matá-la.

_ E o que você pretende fazer? - ela cruzou os braços de maneira impaciente - depois de vestir suas roupas normais, é claro.

_ Eu vou tê-la. Nem que tenha de passar por tudo sozinha.

_ Como você vai criar um bebê num alojamento de faculdade? Eles não vão deixar. Vão te expulsar de lá.

_ Eu não vou criá-la no alojamento. Vou criá-la em Londres. Eu vou voltar pra casa. Vou voltar para o lugar de onde eu nunca deveria ter saído.

_ O quê? Como assim? Você não tem pra onde ir. Não tem onde ficar.

_ Eu tenho uma casa. Tenho amigas. Tenho a minha força. Eu posso dar um jeito. As coisas vão se ajeitar. Sempre se ajeitaram.

_ Mas... Você vai deixar a faculdade?

_ É como o médico me disse lá dentro: 'circunstâncias ruins levam à medidas extremas'. Eu tenho que fazer isso. Eu sou a única família que ela tem e eu não vou abandoná-la.

_ Você fala desse bebê como se ele fosse uma criança parada na nossa frente. Nem é um bebê. É um feto. Tem centímetros de tamanho.

_ É. Mas ela é minha. E eu vou fazer de tudo para que, daqui a alguns meses, ela possa realmente ser vista pelos nossos olhos.

_ Você vai acabar com a sua vida.

_ Eu não me importo mais. Há pessoas mais importantes do que eu. - eu disse, acariciando minha barriga pela primeira vez.

Melissa J
Enviado por Melissa J em 12/04/2015
Código do texto: T5204801
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