Introdução do meu quase livro "Enterrando a Morte"

Engraçado como o ser humano funciona: só percebe o quanto era feliz quando se encontra em uma situação de perigo iminente. Mesmo que o ser humano em questão não tivesse sido lá muito feliz... Quando ele passa a sentir as baforadas de uma presença estranha que só pode ser a morte, bem ali no pé do ouvido, tudo o que até então não tinha muita importância – um cheiro, um gosto, uma pessoa, alguma coisa banal do cotidiano – adquire um valor inestimável. Essa é uma das consequências de se estar morrendo.

Engraçado como nada é engraçado quando se trata de nós mesmos. Afirmo isso porque eu me encontro em uma situação de perigo iminente, e não estou achando nada engraçado. Sério. Não há um sorriso no meu rosto. Talvez um arranhão ou algumas manchas arroxeadas, ou talvez olhos cansados e inchados, mas um sorriso? Creio que não.

Outra coisa que também posso afirmar com propriedade é esse lance de que as coisas comuns do dia-a-dia, até as que você acha que nunca vai sentir falta, adquirem um valor inestimável quando se está morrendo. E é por isso que escrevo: para gravá-las no papel e, consequentemente, em mim. Se bem que bastou tudo acontecer comigo para que eu nunca mais as pudesse esquecer. Mas escrever me ajuda a entendê-las.

Sempre achei que, quando estivesse numa situação assim – entre a vida e a morte – teria passado por um monte de coisas incríveis, debocharia e cuspiria na cara de meus inimigos e sobreviveria com a maior cara de “isso não é nada, luto contra mafiosos e ninjas e doenças malignas nos glóbulos brancos todo dia”. Estou aprendendo da pior maneira possível que essas coisas só acontecem nos filmes e nos livros; na ficção. Desculpa se estou acabando com as ilusões de alguém aqui mas, na vida real, você não debocha nem cospe na cara de um homem musculoso de quase dois metros, com uma metralhadora nas mãos e inúmeros capangas tão musculosos e assustadores quanto; ou então na cara de uma doença maligna nos glóbulos brancos (acho que já deu pra perceber que é o meu caso, mas se você não costuma ser muito observador e não percebeu, facilito pra você: é o meu caso), até porque isso de cuspir na cara de uma doença é fisicamente impossível – eu acho, não deve ser, não sei. Na vida real você chora, se humilha, implora por sua vida, chama pela mamãe, dependendo da situação até mija na calça. Eu me identifiquei com as quatro primeiras alternativas... Por enquanto, e até quando me lembro.

Não acho necessário detalhar o lugar nem as condições em que me encontro; aliás, não sei se conseguiria nem se achasse, mas posso deixar duas coisas bem claras: 1) não são condições muito boas e 2) ainda me sinto bem o suficiente para escrever sobre elas. Coisinhas básicas que você, que está agora mesmo lendo a introdução desse livro, já deve ter suposto. Desculpem se eu pareço apática, sarcástica ou dramática. Outras consequências de se estar morrendo.

Já que sobreviver sem grandes sequelas me parece muito improvável e aparentemente não há nada a se fazer, o que me resta é lembrar e remoer o quanto minha vida era feliz, ou melhor, razoavelmente boa, há algum tempo atrás. Quando eu despertava ao inalar o aroma de ovos com bacon que já havia impregnado a casa toda e tomava café em minha cama um tanto quanto desconfortável. Quando eu me preparava para ir à escola onde os “meus colegas” me zoavam e onde eu sempre me sentia deslocada e cansada. Quando eu sangrava pelo nariz no meio da aula ou em qualquer outro momento, e recebia transfusão de plaquetas/hemácias/coisas do sangue no geral algumas vezes por mês. Quando eu pedia pizza de calabresa e frango com catupiry, escutava Legião Urbana e fumava alguns cigarros escondidos com meu primeiro, melhor e único amigo, Pietro. Quando eu sentava-me na grande pedra e conversava com o misterioso menino do capuz, o Hector dos olhos castanhos como poças de lama... Há algum tempo atrás, não sei exatamente quanto tempo, eu era feliz. Mais uma consequência de se estar morrendo: você perde a noção do tempo. Mas sim, irrevogavelmente, eu era feliz.

Thainá Mocelin
Enviado por Thainá Mocelin em 21/04/2015
Código do texto: T5215104
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