Mais que a Minha Própria Vida - Capítulo 50

Estava escuro e chovia muito. Os meus olhos pesavam cada vez mais, eu estava tão cansada que sequer percebia o frio que fazia arrepiar os pêlos da pele. Depois de um dia inteiro a correr e brincar naquele parque de diversões, tudo o que eu desejava era tomar um banho de banheira bem quente e cair na cama. Minha mãe estava comigo no banco de trás, envolvendo-me em um cobertor, enquanto papai dirigia. Eu não tinha mais do que sete anos de idade.

_ O que vocês acham de uma passada no Mc Donald's antes de voltar para casa? - meu pai olhou sobre o próprio ombro e sorriu para mim. Só então percebi o quão faminta estava.

_ O que você acha da idéia, Jen? - perguntou minha mãe enquanto trançava meu cabelo com muito carinho e habilidade.

_ Papai, é a melhor idéia do mundo inteiro. - sorri.

A rua estava bastante íngreme, o que levava o carro a balançar todo o tempo. Nossa respiração embaçava todos os vidros do lado interno e eu estava bastante concentrada a desenhar nuvens e corações com o polegar. Num dos trancos que o carro deu a minha boneca se soltou da minha mão, rolando até o banco de baixo. Instintivamente soltei o cinto de segurança que me prendia e embrenhei-me por debaixo do banco, apalpando a lona de revestimento até reconhecer a textura macia e encaracolada do cabelo da boneca.

_ O que é que você está fazendo, menina? Saia já daí. - minha mãe puxou-me pela camiseta.

_ Eu peguei! - sorri, voltando ao meu lugar e segurando a boneca como se fosse um troféu.

_ O que é essa marca na sua cintura, filha?

_ Nada não mãe.

_ É uma mordida? - ele levantou minha camiseta, analisando cada centímetro da minha pele - Quem mordeu você?

_ Um menino lá da sala.

_ Por que ele mordeu você?

_ Porque eu não queria deixar ele jogar minha bola no meio da rua.

_ E por que vocês estavam brincando na rua? Ninguém viu ele morder você? Ninguém fez nada?

_ Não, eu não contei pra ninguém.

_ Por que não?

_ Pois senão depois ele ia me bater, ué. E eu que não ia querer apanhar.

_ Eu vou segunda feira nesse colégio ter uma boa conversa com os professores sobre esse garoto! - minha mãe fechou o punho, irritada. O seu rosto ficava vermelho e sua voz se alterava sempre que ela se irritava assim.

_ Não, mamãe, eu não quero que você faça isso.

_ Farei mesmo assim, anjinho.

_ Não, eu não quero! - irritei-me - Eu não sou um neném!

Minha mãe me olhou com uma expressão irritadiça, como sempre fazia quando eu a desafiava. Eu não via a hora de crescer e não ter mais de depender tanto deles. Por que é que eles tinham de ser tão superprotetores? O carro deu outro tranco e eu quase bati a cabeça no alto do carro.

_ Jen, coloque o cinto. - pediu meu pai com voz autoritária. Eu odiava quando ele falava daquele jeito comigo. _ Não quero, me machuca!

_ Jennifer Summers! - ele aumentou a voz, virando-se para mim de cara feia.

_ Tá bom, não precisa gritar! - enganchei o cinto emburrada.

_ Minha filha, o trânsito fica perigoso quando chove. Já pensou se eu bato o carro? Você tem de estar protegida.

_ Mas você nunca bate o carro. E nem a mamãe á usando o cinto. Por que é que só eu tenho que usar?

_ Sua mãe é adulta. Tem mais força pra se segurar.

_ Eu também sou forte!

_ Você é nossa princesinha. Faz alguma ideia do quanto sua mãe e eu ficaríamos tristes se você se machucasse?

_ George! - minha mãe gritou, de repente. Daí aconteceram três coisas. Eu vi a expressão de terror na face da minha mãe. Eu vi aquele enorme caminhão derrapando na frente do nosso carro. Eu desmaiei.

Acordei exatamente do jeito que se acorda quando se dorme bem menos que o necessário. Mas aquela dor aguda nas minhas pernas me impediam de continuar mergulhada numa hipnose de sono. Lentamente abri os olhos e percebi o ambiente a minha volta. Eu não estava na minha cama. Estava no carro, mas ele parecia bem mais espaçoso e, por algum motivo, havia sido colocado de cabeça para baixo. Haviam cortes e hematomas na minha perna e eu não conseguia me lembrar de nenhuma queda ou pancada que as houvesse feito ficar daquele jeito. Um luz forte batia no meu rosto, do lado de fora, e dezenas de pessoas estavam abaixadas observando-me pelo vidro. - Ouvi o som de uma ambulância do lado de fora. Me lembrei de todas as vezes em que uma daquelas passava perto de mim, na rua, e meu pai desviava o carro para deixar que ela o ultrapassasse. "Ele leva pessoas machucadas ao médico, filha" ele me explicava "então é importante que contribuamos para que eles cheguem bem rápido" .

_ A menina está se mexendo! - gritou uma mulher que eu não consegui ver - Tirem-na de lá!

Instintivamente procurei pela proteção da minha mãe. Mas ele estava estranha. Seu corpo estava estático, seus olhos não tinham vida e ela me olhava com uma expressão assustada. Eu gritei por ela, choacolhei o seu corpo. Mas ela não reagia.

_Papai, o que aconteceu com a mamãe? - perguntei entre soluços - Por que é que ela não fala comigo? E por que é que tem tanto sangue na testa dela?

Novamente eu não obtive resposta. O silêncio era enlouquecedor e, em meio àquela situação, eu me senti solitária e indefesa como nunca antes havia sentido. Eu quis gritar, minha garganta ardia, mas eu abri a boca e não saía som algum. Eu estava em estado de choque. Por quê eles não me respondiam? Será que estavam dormindo? Mas como poderiam dormir e me deixar ali sozinha? E o jantar? E o banho quente? E a história antes de dormir? E o beijo de boa noite?

_ Não se preocupe, criança, vamos tirar você daqui. – disse uma voz masculina. Eu fui agarrada por braços fortes e puxada pela janela quebrada. Ele me deitou com cuidado em uma maca e acariciou os meus cabelos. – Ta tudo bem agora, querida. Como você se chama?

Atrás dele eu vi meus pais serem retirados um de cada vez de dentro do carro e colocados em macas diferentes. Nenhum deles se mexia e um rastro de sangue era deixado no caminho por onde minha mãe era levada. Eu me esqueci de como se chorava e me esqueci de como se respirava.

_ Menina! – o homem me choacoalhou, tentantando me tirar daquele estado de choque. – Qual o seu nome? Você tem algum parente pra quem possamos ligar?

_ Eu quero a minha mamãe. – choraminguei, sentindo-me cada vez mais fraca.

Haviam colocado uma espécie de forro branco por cima de meus pais antes de suas macas serem empurradas até a ambulância. Eu não entendia por que é que eu não podia ir com eles. Eu estava bem, eu podia caminhar até lá, podia me deitar perto da minha mãe. Eu não queria ficar longe deles.

_ Como você se chama? – tentou o enfermeiro mais uma vez.

_ Eu...Eu não me lembro.

_ Ela está em estado de choque – cochichou para uma outra enfermeira que me observava com grandes olhos castanhos.

_ Eu estou cansada. Posso voltar pra casa com a mamãe e o papai? Minha perna não ta doendo muito não. Mamãe pode me fazer um curativo. Eu não preciso ir ao médico.

_ Você não tem nenhum outro parente que possamos ligar?

_ Eu posso ver meus pais?

_ Vamos levar você ao hospital primeiro. Você está bem machucada.

_ Mas...

_ Vai ficar tudo bem. – ele mentiu. Mal sabia eu o quão errado ele estava. Nada mais ficaria bem. Nunca mais.

Fui levada para outro caminhão como aquele que levou os meus pais para longe de mim. Eu estava agitada e impaciente. Não queria ficar ali com aquelas pessoas estranhas. Por que é que os meus pais haviam me deixado ali sozinha? Quando é que eu poderia vê-los?

Senti uma agulha picar o meu braço, e percebi que eles haviam injetado algo em mim. Aos poucos eu fui me tranqüilizando e minhas pálpebras pesavam cada vez mais. Logo me cansei de lutar para ficar com os dois olhos abertos e deixei que eles se fechassem. Eu estava mesmo cansada.

_ Coitadinha. – eu ouvi um homem sussurrar – Como contar a uma garotinha que seus dois pais estão mortos? _ Eu não sei. O hospital deve se encarregar disso. Eles devem ligar para que algum parente vá buscá-la. – a mulher respondeu. Eu me senti dentro de um filme como aqueles que minha mãe gostava de assistir. Aquilo não podia ser real. Como os meus pais poderiam estar mortos? Eles eram o meu porto seguro, eram tudo o que eu tinha.

_ O quê? Não! – eu gritei, lutando contra os efeitos daquela substância que me dopava e colocando toda a minha força para me levantar da maca. – Vocês estão mentindo! Eles não estão mortos, eles nunca fariam isso comigo.

_ Querida, você precisa descansar. – ele segurou firme minhas mãos.

_ Não! –gritei – Eu quero sair daqui. Eu odeio você! Eu odeio todos vocês.

Mas a reação do calmante no meu corpo foi ficando muito mais forte que minha força de vontade e, logo, meu corpo parou de me obedecer. Senti minha mão sendo apertada forte, enquanto uma voz masculina chamava meu nome. Abri meus olhos devagar e logo percebi que havia sido só um sonho. Uma lembrança ruim daquele pesadelo. Tantos anos haviam se passado, mas as lembranças em minha mente eram tão nítidas quanto as do dia anterior.

_ Você estava gritando. Tá tudo bem?

_ Connor...- solucei, abraçando-lhe com toda a minha força. O seu cheiro, a textura da sua pele, da sua barba por fazer, o vapor quente que saía de sua boca, tudo aquilo me acalmava. Nos seus braços eu me sentia totalmente protegida. Era tão bom tê-lo por perto.

_ Ta tudo bem amor. – ele acariciou os meus cabelos, meio desconcertado. Ainda estava escuro, então provavelmente era madrugada. Eu soluçava com o mesmo desespero de anos atrás, quando meu avô foi me buscar naquele hospital e me disse que eu moraria com ele dali em diante. – Foi só um sonho.

_ Eu sonhei...Eu vi...Eu estava no acidente. Foi horrível.

_ De novo com o acidente?

_ Eu não me acostumo com isso. A cada vez que eu tenho esse sonho é a mesma dor, a mesma agonia, a mesma sensação de abandono e impotência, a mesma...Culpa.

_ Nós já conversamos sobre isso. Não tem como ter sido culpa sua. Você tinha sete anos.

_ Se o meu pai não tivesse que ter se virado para me mandar colocar o cinto ele nunca estaria vivo. E eles estariam comigo até hoje.

_ Mas daí você nunca teria se mudado. – ele enrolou uma mecha dos meus cabelos no dedo, sentando-se de frente para mim, tão perto que nossos narizes se tocavam – E nunca teríamos nos conhecido. Você nunca teria vindo morar comigo, nós nunca teríamos aquela filha linda que nós temos. Eu seria infeliz.

_ Isso não faz com que doa menos, Connor. Não é algo que você possa dizer “veja pelo lado bom”. Você sabe que se houvesse alguma forma de poder ter as duas coisas eu o faria.

_ Eu sei, eu sei. – ele beijou o meu pescoço e eu me deitei em seu ombro. – Tem acontecido muito freqüentemente nessas últimas semanas. Tem algo errado? Você precisa conversar ou algo assim?

_ Não, não tem nada errado. Eu amo ter você e a Hailie por perto. Amo essa casa, amo essa cidade. Eu não mudaria nada na minha vida, exceto...Voce sabe.

_ Eu sinto muito. – ele me olhou preocupado. Só eu sabia o quanto ele odiava se sentir impotente daquela forma. Cada vez que ele via a mim ou a Hailie sentindo dor sem que houvesse nada que ele pudesse fazer para melhorar, seu rosto era de total agonia. Eu sabia que aquilo dilacerava o seu coração. Se ele pudesse, tomaria a dor toda para si.

_ Você acha que é algum tipo de aviso? Que significa que algo ruim vai acontecer?

_ Você deve estar só com saudade. Nada vai acontecer. Não se preocupe.

_ Como pode ter certeza?

_ Apenas tenho. Nada vai acontecer. Confie em mim.

_ Você não deve mais estar agüentando acordar no meio da noite com os meus gritos.

_ Você sabe que eu não me importo.Acontece. Não é sua culpa.

Ele se deitou novamente para a cama, puxando-me pelos braços para que eu me deitasse eu seu peito. Ele era a única pessoa do mundo que conseguia ficar bonita com os olhos inchados de sono e o cabelo bagunçado. Sua testa se franzia e sua boca formava uma linha fina quando ele me olhava preocupado. Seus olhos hipnotizantes fitavam os meus, minuciosos, como se quisessem captar qualquer sentimento que eu pudesse expressar. Como se fosse difícil me decifrar. Connor conseguia ser sempre tão... Único. Eu jamais me cansava de olhar para ele. Mesmo já tendo se passado quatro anos desde o dia que nos mudamos de cidade. O dia em que ele disse que sempre que me olhava ainda via aquela garotinha de quinze anos de idade.

Eu ainda sentia a mesma coisa. Cada vez que o olhava, cada vez que o tocava, mesmo quando brigávamos por todas aquelas coisas efêmeras do nosso dia-a-dia. Eu não conseguia deixar de me sentir sortuda por tê-lo por perto. Ele estava crescendo, a cada dia que se passava, perdia aqueles poucos traços de menino que ainda lhe restavam, para se tornar um homem incrível. O seu rosto mudara, umas discretas rugas começavam a se formar nas laterais de seus olhos. Até mesmo cada um dos seus gestos e maneira de falar. Ele nada mais tinha de criança. Eu admirava todas as mudanças dele da mesma forma que admirava a velocidade impressionante com que nossa filha deixava de ser um bebê. E pra mim ele ainda era o mesmo. Ele ainda era o 'cara misterioso', meu primeiro amor, Connor Garrel.

Acordei algumas horas depois ouvindo alguns cochichos pelo quarto. Eu ainda me sentia exausta. Permaneci com os olhos fechados tentando me lembrar que dia era, quando senti o peso da Hailie sobre mim. _ Feliz aniversário, mamãe. – sua voz doce exclamou, animada. Abri os meus olhos sonolentos e tentei me situar. Connor sorria para ela, carregando nas mãos uma caixa pequena e embrulhada com um laço vermelho no topo. Já Hailie estendia para mim um bolinho com uma pequena vela cor-de-rosa no topo.

_ Você tem que fazer um desejo e soprar a vela. – ela disse muito séria.

Os seus cabelos cor de ouro estavam emaranhados até a altura dos seus ombros. Ela ainda usava o pijama de ursinhos com o qual eu a havia vestido na noite anterior. Seus olhos, negros e profundos como a noite, me encaravam curiosamente.

_ Mamãe? – ela me ofereceu novamente o bolo, apertando-o forte com suas mãozinhas pequenas e delicadas.

Ah, Hailie... Eu não podia sequer dizer o nome dela sem deixar de sorrir. Minha pequena esperança, meu frágil tesouro, parte de mim. Minha filha. Naqueles últimos cinco anos, a cada dia que eu passava com ela, a cada carinho, a cada sorriso, eu ainda me sentia no meio de um sonho. Eu amava presenciar o seu crescimento, amava ouvir as palavras novas que ela aprendia, participar de suas aventuras imaginárias, e protegê-la da mesma forma que os meus pais me protegeram um dia. Era tão incrível a velocidade com a qual ela se tornara mais velha. Eu me lembrava tão nitidamente de sua primeira palavra, dela andando pela casa apoiada nas paredes, de cada descoberta e aprendizado. Fazer parte daquilo tudo era simplesmente mágico. Como então ela queria que eu fizesse um desejo? Eu já tinha tudo.

_ Pronto. – eu soprei a vela.

_ O que você pediu, mamãe?

_ Não posso contar,ué.

_ Ah não! Pode sim. Me conta, me conta.

_ Conto não. – eu beijei a ponta do seu nariz. Depois cada uma das suas bochechas, sua cabeça, sua testa, suas pálpebras. Ele começou a dar gargalhadas e empurrar meu rosto.

_ Cosquinha! – ela disse. Daí eu a abracei bem forte.

_ Eu amo tanto você.

_ Eu também mamãe.

_ E eu? Não ganho beijo? Connor estava em pé ao lado da cama. Vestia apenas uma calça de moletom verde e seu cabelo estava tão emaranhado quanto o de Hailie. Tentei nem pensar sobre o estado do meu próprio cabelo. Ele se sentou ao nosso lado e acariciou o cabelo de Hailie. Apoiou os seus braços na cama e seus músculos ficaram ainda mais evidentes. Ele era estonteante. Nunca deixara de ser.

_ Feliz aniversário. – ele segurou a minha nuca e me deu um beijo meio desajeitado com sabor de café.

_ Obrigada. Mas vocês não precisavam ter acordado tão cedo. É domingo.

_ Bem, como eu ando metido no trabalho por 25 horas ao dia, achei que poderíamos aproveitar esse domingo juntos.

_ Papai, um dia só tem 24 horas. – Hailie disse, séria. Ela era muito esperta e adorava mostrar isso ás pessoas. Nunca perdia uma chance. Tinha uma mania de liberdade e independência impossível. Era tão igual a mim na idade dela.

_ É só uma maneira de falar, querida.

_ Uma maneira errada.

_ Sua chatinha. – ele bagunçou os cabelos dela.

_ Chato é você! – ela mostrou a língua.

Tirei rapidamente o laço que prendia o fecho da caixinha enquanto aquela platéia me observava ansiosamente. Eu esperava algo como um colar, uma pulseira, um anel. Nada muito peculiar. Então é claro que estranhei aquele papel dobrado ao fundo da caixa. “Vale um jantar hoje á noite. Nós bem que poderíamos deixar a Hailie brincar na casa dos Marshall hoje, não é mesmo?”

Os Marshall resumiam-se a cinco pessoas. Henry, o homem que teve a idéia de abrir aquela nova empresa em Edimburgo na parceria de Connor e algumas outras pessoas, Molly, a sua esposa, por quem acabei nutrindo grande amizade naqueles últimos quatro anos, ainda que ela fosse dez anos mais velha que eu e me tratasse mais como uma filha ou irmã mais nova do que como amiga, Louise, a filha mais velha deles, com oito anos na época e Sam e Lílian, os gêmeos de quatro anos de idade, com quem Hailie corria pela casa desde que adquirira força nas pernas o suficiente para tal.

Quando nos mudamos para Edimburgo nós ficamos hospedados na casa dos Marshall. Na época, Molly ainda estava grávida de nove meses dos gêmeos, e eu fui muito útil ajudando-na com todas aquelas dificuldades da gravidez as quais eu conhecia bem. Como Hailie ainda era muito pequena e Connor tinha que passar muito tempo na rua cuidando de negócios, eu não procurei outro emprego, dedicando-me a passar a maior parte possível do meu tempo com ela. Era ótimo para mim, que abominava a ideia da criação dela ser feita por uma babá ou pelos funcionários de uma creche. A minha mãe adorava passar o seu tempo ao meu lado e eu queria fazer exatamente igual com Hailie. É claro que Molly, por já ter na época uma filha de quatro anos de idade, me ajudou muito na criação de Hailie. Ela sabia exatamente o que dizer, o que fazer ou onde levar. No fim das contas ela me ajudava com Hailie muito mais do que eu a ajudava com a sua segunda gravidez. Ela foi como uma mentora para mim. Então não é de se estranhar que tenhamos virado amigas e que nossos filhos tenham crescido juntos.

Não vou dizer que tudo foi maravilhoso desde que nos mudamos para lá e que, nos últimos meses, nossas vidas haviam sido um conto de fadas. Seria hipocrisia da minha parte. Mas eu supunha que superávamos bem as nossas crises. Estávamos um ao lado do outro. Éramos uma família, pro que desse e viesse. Afinal é disso que se trata uma família, não é? Nunca abandonar.

Nós moramos por dois anos com os Marshall. Muito tempo, é, eu sei. Eu me lembrava disso a cada vez que Rachel me visitava e, já descrente e sem qualquer tipo de esperança sobre relacionamentos depois de tanto ter sofrido pelo Ethan, pedia que eu abandonasse Connor e fosse com a Hailie passar um tempo com ela até que eu me reestabelecesse em Londres. Afinal de contas tínhamos ainda uma casa lá, enquanto em Edimburgo não tínhamos nada. Eu odiava aquilo. Odiava aquela cidade de aspecto antigo, visto que grande parte dela conservava uma estrutura histórica medieval, odiava o jeito das pessoas, as regras, as formas de tratamento. Odiava o próprio cheiro daquele lugar. Sempre que eu pensava em lar eu pensava em Londres e somente em Londres. Mas, algumas vezes por mês, eu Connor e Hailie saíamos em família para algum restaurante legal ou para passar o dia em um parque e, naqueles nossos momentos juntos, eu percebia que eu jamais conseguia abandoná-lo. Eu o amava completamente. Amava até mesmo os seus defeitos. E algo dentro de mim dizia que aquilo também iria passar. Nós superaríamos aquilo e transformaríamos o problema em uma coisa boa, tal e qual fizemos quando eu engravidei aos desessete anos.

De certa forma aquela intuição estava certa. No fim daqueles dois anos, as coisas começaram a dar muito certo na empresa nova de Connor e nossa vida foi ficando melhor. Nós compramos nossa própria casa, com um espaço muito maior para a Hailie brincar, um enorme jardim da frente e até mesmo um quarto a mais “pra eu montar um escritório um dia”, dizia Connor, mas eu bem sabia o quanto ele desejava ter um menininho. Connor comprou outro carro e até colocamos Hailie numa escola primária, onde ela aprendia muito rápido e nos fazia os pais mais orgulhosos do mundo. E é claro que eu tinha muito orgulho e admiração pelo Connor. Você tem de ser muito forte para renegar uma família com muito dinheiro e começar a crescer sozinho. Ele não procurara o pai dele para pedir ajuda uma vez sequer. Eu apenas o via falando ao telefone de vez enquando com a mãe mas, mesmo que eu dissesse que era errado e que ele não deveria fazer isso, ele rompeu quase que totalmente os laços com a família.

Também não posso dizer que o estado de espírito de Connor naquela manhã era o seu estado de espírito de sempre. Ele ainda era Connor Garrel, ele ainda tinha aqueles dois lados e, de vez em quando, o lado frio e misterioso tomava conta dele muito mais do que o lado que fazia com que eu me sentisse segura. Ás vezes ele chegava do trabalho muito estressado e queria simplesmente ficar sozinho. Nesses momentos, qualquer demonstração de apoio que eu ousasse dar ou qualquer demonstração de carinho por parte de Hailie eram vistas por ele como uma afronta e ele ficava muito irritado. Era um problema porque Hailie era muito carinhosa e me cortava o coração ver os seus olhos a encher de lágrimas quando o pai a tratava de forma fria. Eu sabia que aquilo a marcaria de alguma forma, então tentava suprir todo o vazio com todo o amor que eu era capaz de dar.

Mas não era que Connor fosse um pai ruim ou um namorado ruim. Qualquer pessoa que nos conhecesse sabia o quão apaixonado ele era por mim e por Hailie. Apenas era o jeito dele. Ou de parte dele. A questão era que eu tinha de tentar entender. Somente ele trabalhava e trabalhava muito para fazer com que Hailie e eu vivêssemos bem. É claro que não podíamos fazer nenhuma extravagância, mas nunca nos faltava nada. Eu tinha muito mais tempo para descansar e me divertir do que ele. E eu ficava muito mais com nossa filha. Então era normal que as vezes ele ficasse muito cansado. Desde que ele nunca fizesse nada de ruim para nenhuma de nós – e eu tinha a mais absoluta certeza de quem ele seria incapaz de tal coisa – e que, em seus momentos normais, continuasse a ser aquele homem maravilhoso com o qual eu nunca me cansava de estar, eu o aceitaria sempre e sempre.

_ O que é que ta escrito? – Hailie subiu em meu colo, pegando o papel para si e tentando juntar cada sílaba, pronunciar o seu som, juntá-las em palavras, depois em frases e ainda tentar fazer tudo aquilo fazer sentido. – Va-le um jan...jan...jantar. – ele balbuciou, muito concentrada. Só quando você tem um filho e acompanha de perto o seu aprendizado, você percebe o quanto as coisas que são simples pra você hoje tiveram de ser trabalhadas no passado. – Vale um jantar. – ela sorriu – A letra do papai é muito difícil de ler. O que mais ta dizendo, mamãe?

_ É um presente pra você também, querida.

_ Sério? – ela sorriu, exibindo duas lindas covinhas em suas bochechas rosadas.

_ Sim. A gente vai levar você pra brincar com o Sam, a Lil e a Louise hoje á noite.

_ Que legal! – ela bateu palmas – A gente pode levar o meu vídeogame?

_ Claro.

_ Eu vou ligar pra contar pra Louise. – ela desceu da cama, correndo pelas escadas.

_ Um jantar, é? – sorri para Connor.

_ Claro. Você merece, não é todo dia que se faz 23 anos. E, afinal de contas, há quanto tempo não ficamos completamente sozinhos?

_ Há cinco anos, três meses e sete dias. – sorri, dizendo exatamente a idade que Hailie tinha.

_ Uau! Nós realmente precisamos de um tempo sozinhos.

Melissa J
Enviado por Melissa J em 14/05/2015
Código do texto: T5241095
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