Trecho do meu projeto de livro

"Direto ao meu lugar. Sim, para pensar, e sim, com uma pequena esperança de encontrar o menino do capuz. O Hector de olhos cor-de-lama.

Era uma esperança meio grande, na verdade, que eu tentava reprimir simplesmente porque não tinha muita probabilidade de acontecer. E também porque não parecia-me certo. Sei lá... não era de fato errado, eu ficava o tempo todo me convencendo disso e todas as mini-eu dentro de mim concordavam, mas uma em especial cruzava os braços, fazia cara feia e repetia: “não é certo, você está trocando o Pietro por esse estranho, não é certo”. Eu ralhava com essa pequenina mini-eu e dizia “somos em maior número, se conforme e fique na sua”.

Fui andando pelo carreirinho, me demorando um pouco mais para observar o céu – que já estava salpicado de estrelas – e para ouvir o barulhinho dos gravetos quebrando debaixo dos meus pés. Parei de andar, mas o barulhinho continuou. Olhei para atrás, automaticamente sorrindo, e lá estava ele, meio esgueirado por entre as árvores.

Não lhe dirigi a palavra, nem ele dirigiu a mim. Segui o caminho pelo aclive, agora com o barulho de quatro pés esmigalhando gravetos enchendo o silêncio da noite na mata.

Chegamos na pedra. Quer dizer, eu cheguei. Sentei-me e esperei que Hector sentasse ao meu lado, mas ele não estava mais lá. Talvez não tivesse me seguido e dado no pé. Fiquei decepcionada, correndo os olhos pelas árvores para encontrá-lo.

A noite estava com um bafo quente, mas não era desagradável. Quando, por um momento, já tinha esquecido do lance com o menino do capuz e fiquei admirando a vista, ouvi passos atrás de mim, passos de alguém correndo.

Nem deu tempo de ver o que estava acontecendo. Assim que virei a cabeça, Hector já estava passando do meu lado como um vulto e, logo em seguida, jogando-se da grande pedra.

Ouvi o assobio longo de seu trajeto, o baque de seu corpo na água. Não muito diferente das pedras que jogava lá, só que muito mais alto.

Ele demorava uma eternidade para emergir e eu comecei a me preocupar de verdade. Finalmente, sua cabeça saiu da água e eu gritei “Hector, você está bem?!” com as mãos em concha em volta da boca. Ele não ouviu, então me limitei a observá-lo enquanto nadava para a parte rasa, encontrava o solo e sumia entre as árvores lá debaixo.

Pensei que provavelmente ele iria pra algum lugar se secar e tudo mais, e isso me murchou um pouco. Agarrei umas pedrinhas e joguei-as no lago, cabisbaixa. Logo que elas fizeram ploaft na água, ouvi passos atrás de mim novamente. Era ele.

– Você quer se matar? – perguntei esbaforida.

Não sei se foi intencional, mas ele deu um sorriso meio cafajeste, de sem-vergonha. Percebi, lembrando do que ele falara sobre como lidava com a dor e que já havia tentado se enforcar, que não devia ter dito exatamente aquela frase.

– É só o calor – ele falava calmamente, terminando de erguer o calção. – O calor me deixa louco de puto.

“Louco de puto”. Eu ri. Aí me dei conta de que ele havia pulado no lago nu e de que eu estava olhando diretamente para seu peitoral, então parei de rir abruptamente e desviei o olhar, constrangida.

Esperei que ele colocasse a camiseta logo para que eu pudesse olhá-lo sem parecer uma pervertida, mas ele veio sentar-se ao meu lado sem camiseta mesmo. Enfim, eu correria o risco porque gostava de olhar pra ele. E a culpa era toda dele por ser bonito. Runf.

– Bem... querer eu quero, só não consigo.

Um “por que?” insistente martelava em minha cabeça, mas eu não tinha coragem de perguntar.

Só que ele respondeu antes mesmo disso.

– Sei lá... De uns tempos pra cá, não sei dizer exatamente quanto tempo, tudo me cansa. Nada me contenta ou alegra. Quando acordo... só o que consigo pensar é “ah meu Deus, lá vou eu de novo!” e... sei lá. Cogitar meios de acabar com tudo... se tornou tão natural pra mim quanto a luz do Sol. Tão inevitável quanto respirar. O mundo... bem. O mundo já tem merda o bastante sem mim.

Senti-me desconfortável e triste e com muita vontade de abraçá-lo e dizê-lo que... Dizê-lo algo bom.

– É... Merda é o que mais temos por aqui – ele deu uma risada baixa, e isso me encorajou a dizer o resto da frase. – O que quase não se encontra é gente que queira recolher a merda e plantar flores.

Hector ficou me olhando nos olhos por um longo e desconcertante tempo. Fiquei tentando decifrar o que o olhar escondia; as palavras que estavam ali, escritas e não ditas. A reação dele era a minha própria reação diante de frases encorajadoras e bonitas: ceticismo, mas com uma pontinha quase intangível de esperança cega.

Presumi que a conversa tomaria um rumo meio deprimente se continuássemos naquele assunto, então ataquei como a pervertida para o bem de todos e felicidade geral da nação:

– Belas clavículas.

Ao terminar de proferir a frase, eu fiquei tipo “ai meu Deus ele vai me achar uma tarada por falar isso eu sou tão assanhada”, mas depois que ele fez aquela cara de hã eu me senti uma idiota. Digamos que elogiar as clavículas de alguém não é exatamente a atitude de uma pervertida que se preze.

Ele ainda estava com cara de hã e eu comecei a rir mais e mais alto, pela coisa toda. Fiz sinal com a cabeça para suas clavículas, o que ele demorou pra entender.

– Ah... isso – disse ele, apontando para uma delas. – Aqui no Planeta Terra chamamos de ombros, mas achei legal você reparar.

Continuei rindo. Não pude deixar de pensar que aquilo era o tipo de coisa que o Pietro diria, e nesse momento parei de rir. A mini-eu emburrada voltou a me atormentar, e dessa vez achei que ela estava certa. Mais uma vez, era melhor mudar de assunto.

– Por que você tava correndo daquele jeito?

– Pra tomar impulso para pu...

– Não, não – ele achava que eu estava falando daquele momento, só na minha cabeça estava muito claro que não era. – Naquele dia em que te vi pela janela do ônibus.

– Ah sim, naquele dia... É complicado.

Ele deu uma longa pausa, mas voltou a falar:

– Eu tava fugindo do meu padrasto. Morava com ele em outra cidade, não muito longe daqui, e era horrível. Ele batia em mim e em minha mãe. Ele... tipo, a matou. Só que, bem, ela sabia que cedo ou tarde ele faria isso mesmo, então já me advertia antes. Falava que, se e quando acontecesse, eu deveria vir pra cá, pra essa cidade, que foi onde ela cresceu e conheceu meu pai, e procurar pelo meu avô paterno. Só que não me deu pista nenhuma, acho que nem ela sabia nada sobre ele, só que estava aqui e que era médico, na época. Então – Hector suspirou demoradamente – aqui estou eu.

Fiquei um momento em silêncio, pensando no que dizer.

– Então... naquele dia...

– Tinha acabado de receber alta do hospital em que estava – entrecortou ele.–Aproveitei que ele tinha saído, com certeza pra se embebedar, e fugi.

– Tem ficado onde, desde então?

– Por aí... vou zanzando pelos postos de saúde da cidade procurando pelo meu avô, e eles são bem camaradas... me dão comida, roupas e tal. De qualquer forma, é melhor do que ficar lá... com ele.

Eu me esforçava para não ter pena dele, pois sabia o quanto era ruim sentir que as pessoas só eram legais com você por pena... mas aquilo mexeu comigo. O modo como ele se referia ao padrasto, com uma repulsa tão declarada. Seus problemas... Eles pareciam tão maiores que os meus que quase senti vergonha.

– Quer ir pra minha casa? – Nem percebi que tinha dito isso, só... saiu.

– Cê tá brincando, né?

– Não – novamente eu disse sem perceber, e tentei consertar em seguida: – eu só... gosto muito de você.

– Mas você nem me conhece. Tudo o que eu te disse pode ser mentira, já pensou nisso?

– Eu conheço você, Hector... é só um garotinho.

Ele abriu a boca para protestar, mas mudou de ideia e ao invés disso jogou uma pedra longe, fazendo uma parábola até cair na água.

– Meu nome é Hector... – disse ele no ar, como fiz quando nos conhecemos. A princípio pareceu uma frase desconexa, mas ele prosseguiu: – Mas você pode me chamar de Tinho.

Seu sorriso ainda era meio enferrujado, mas tinha evoluído muito desde o último e eu adorei.

– Quais seus trechos favoritos do Perfeitamente Desumano?

– Ah... – ele mexeu nas pedrinhas ao seu lado e depois mirou a Lua. – O livro todo é meu trecho favorito, você deve saber bem disso, mas sei lá... Nos últimos tempos, alguns têm significado mais pra mim. Como aquele que te mandei.

– Eu gosto muito do final. Não é incrível?

– Demorei um pouco pra entender. Termina meio vago. Mas achei uma boa interpretação da nossa realidade.

“Interpretação da nossa realidade”, que bonitinho ele falando isso.

– É, é meio triste, mas a vida acaba de um jeito triste – divaguei. – Quer dizer... quantas pessoas poderiam dizer “eu morri feliz”?

– Se eu morresse agora, agora mesmo... poderia.

Meu cérebro não entendeu a frase de imediato, e quando o fez fiquei tipo derretendo por dentro, e congelando de novo, e derretendo mais uma vez.

– Err... está feliz? – perguntei, morrendo de medo de ter entendido errado e de parecer uma idiota, mas também muito esperançosa para que estivesse certa.

– Mais alguém (além de um escritor que nem sabe da minha existência) me chama de Tinho. Eu tenho... uma amiga, certo?

– Certo. Então eu, como sua amiga, devo advertir que vista sua camiseta.

– Mas está calor – e aí ele fez um barulho parecido com meu típico “grrrh”.

De qualquer forma, ele se esticou para o lado e agarrou a roupa. Mas não vestiu. Procurou algo no bolso da blusa, fazendo caretas e soltando grunhidos, irritado por não achar o que queria. Por fim, tirou de lá uma folha de papel dobrada várias vezes.

– Como eu disse, o pessoal dos postinhos são bem camaradas. Me deram papel e caneta e, bem, escrevi algo por esses dias.

– Posso ler? – perguntei, apreensiva.

– Claro! – ele exclamou mais alto do que gostaria, enrubesceu e diminuiu o tom. – É, quer dizer, pode, se quiser.

Ele fez menção de entregar-me o papel e eu o segurei. Só que ele não soltou, receoso.

– Você vai me achar um idiota.

Fiz um leve aceno de cabeça para que ele não se preocupasse. Sendo assim, ele afrouxou os dedos do papel, que eu peguei e li.

O amor não é um sentimento, é uma habilidade. Como toda habilidade, é algo que se aprende... com a prática. Acho que é por isso que amar é tão complicado. Não é comum abordar uma pessoa e dizer: “Olá, posso tentar aprender a amar com você?”. A pessoa sentiria-se usada, pois todo aprendizado implica erros, e a sociedade consideraria essa atitude imoral, pois o amor é considerado sentimento e, como tal, deveríamos nascer sabendo administrá-lo. Por isso dói. Por isso temos medo. Eu sempre me considerei uma pessoa não-amável, mas isso porque sempre estive apegado a essa concepção de que o amor é sentimento, é dom inato. Pensava: “Bem, eu simplesmente não nasci com ele e não há nada a se fazer”. Acontece que as pessoas mais difíceis de amar – as pessoas mais não-amáveis – são as que mais urgentemente precisam de amor. Elas só precisam tentar, encontrar alguém com quem tentar. Alguém também ciente de que, como qualquer outro aprendizado, amar implica erros. Não quero “desmagicalizar” o amor nem nada, mas é como andar de bicicleta: Você cai diversas vezes, bate no meio-fio, rala os joelhos, porém quando finalmente aprende... sim, é meio mágico.

Enquanto deslizava os olhos pelo papel, Hector brincava nervosamente com os dedos, fitando o céu. Me encantei com o texto, com o ponto de vista dele, com as palavras que usou, e lembrei-me de algo que Pietro disse: “Pessoas difíceis recebem amor de uma forma distorcida, aliás, qualquer sentimento”.

Compreendi num estalo que eu também me considerava uma pessoa não-amável.

– Por que eu te acharia um idiota?

Ele pensou por um momento. Não esperava por aquilo.

– Sei lá, é sobre amor, e eu sou um ga...

– Foi a coisa mais bonita que já li.

Ele se retraiu, abraçando os joelhos e apoiando a cabeça neles.

– Mas e você? Quais seus trechos preferidos?

– Bem... o livro todo é meu trecho preferido, mas você sabe disso.

Ele sorriu e eu continuei:

– Acho que é aquele em que o George fala... – limpei a garganta – "Sinceramente, as músicas mais desconhecidas são as que mais me atraem. E ela, ela sempre foi uma canção desconhecida".

Hector deixou as pernas penderem da pedra novamente e, ainda fitando o céu, disse como quem diz algo totalmente natural:

– Você é a música mais desconhecida de todas as músicas, Marjorie.

Sua voz saiu um pouquinho mais fina. Um tipo de choque percorreu meu corpo, fazendo meus dedos formigarem. Senti minhas bochechas corarem e torci para que ele não olhasse pra mim. Coisa que ele fez logo em seguida, pigarreando e engrossando a voz.

– Quero dizer, eu só... gosto muito de você.

– Mas você nem me conhece... Eu posso ser uma maníaca e sacar um facão de açougueiro agora mesmo pra te esquartejar.

– Eu te conheço... você é só uma garotinha.

Corujas piavam e cortavam o silêncio. Me encolhi e agarrei os joelhos, como Hector fizera outrora.

Eu estava disposta a tentar aprender a amar com ele, afinal. Ralando os joelhos, batendo no meio-fio e tudo o mais."

Thainá Mocelin
Enviado por Thainá Mocelin em 18/06/2015
Código do texto: T5281763
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