"Oh frio! Oh escuridão! Por favor, não me jogues neste amarronzado latão!"

Fiquei ali sentada, vendo Lilo sumir do quarto e me sentindo péssima. Ele não tinha culpa pela minha leucemia, por minha mãe ter nos deixado e por eu não conseguir fazer amigos. Passei um filme na cabeça, o filme da minha vida, pra ver se encontrava a cena em que me tornei o que sou. Devo ter me perdido em algum ponto, porque nem sempre fui assim. Eu era agradável; sorrir não me era algo tão estranho; dias bem humorados não eram eventos efêmeros, como eclipses ou algo assim.

Lembrei de uma vez em que papai levou-me numa feira. Passamos por uma venda de tomates: eu sentada nos ombros dele, me sentindo incrível ao ver as pessoas lá longe bem pequenininhas. Acho que foi aí que meu egocentrismo nasceu, mas não vem ao caso. Lilo parou ali, em frente àquele “mar vermelho” de tomates – crianças de oito anos usam muitas hipérboles, porque tudo parece grande demais para elas, e por isso mesmo foi tão incrível ver as pessoas tão pequenininhas, enfim, eu tenho de manter o foco aqui! – e aí ficamos só olhando. O Sol batia perfeitamente naquele mar de tomates, até os reflexos pareciam ondas, apenas um ponto no canto superior direito estragava minha analogia de criança. Enquanto pensava o que aquela parte escura no mar poderia ser – talvez um tubarão ou um surfista muito bronzeado – meu pai inquiriu:

– Está vendo aquela parte escura ali no canto? – Ele sabia que eu estava vendo exatamente aquilo, mas perguntou mesmo assim porque adorava retóricas... Acho que pelo simples fato de sentir-se um gênio explicando coisas que eu não sabia na época.

– Tô sim – respondi, já curiosa.

– Então – fez uma pausa, para me atiçar. – Aquele tomate está podre. Percebe que os outros que estão em volta também estão apodrecendo? – balancei a cabeça em afirmação, o que ele pôde constatar olhando nossas sombras no chão. – Se ele não for tirado logo dali, pouco a pouco todos vão apodrecer.

A dona da venda apareceu, interrompendo ou finalizando a conversa, talvez ambas as coisas. Era uma senhora de uns sessenta e cinco, setenta anos. Sorriu para nós, e percebi que lhe faltavam alguns dentes da frente. Ou vários deles. Ok, talvez todos.

Meu pai tirou a carteira do bolso e, para isso, teve de se inclinar um pouco para o lado; desequilibrei-me e espremi os olhos, com os braços paralelos em frente ao rosto, já esperando o baque do meu corpo estatelando na terra.

– Ei! Não vou te deixar cair! – disse Lilo entre risos, segurando firmemente as laterais do meu corpo. – Nunca.

Rimos juntos. Ele pegou algumas notas na carteira e deu para a senhora. Em contrapartida, ela lhe ofereceu uma sacola, sorrindo ainda mais do que antes, o que era estranho devido à sua ausência de dentição. Foi colocando um, dois, três, quatro, cinco tomates. O sexto era aquele, podre, fato que me surpreendeu. Depois mais um, dois, três dos que estavam próximos desse, apodrecendo. Não sei quanto custavam tomates, mas tenho certeza de que ele pagou àquela senhora muito mais do que se pagaria por cinco tomates bons e quatro apodrecidos.

Continuamos caminhando por entre as tendas coloridas e animadas que vendiam de tudo, abarrotadas de gente de tudo quanto era tipo, agora segurando a sacola de tomates. Lilo parou numa daquelas várias latas de lixo coloridas, tirou os quatro tomates podres e jogou-os na lata marrom destinada aos orgânicos.

Nesse dia aprendi três coisas, primeiro que a) meu pai era um homem bom, muito bom e b) eu era um tomate podre, o que mais tarde me fez concluir que c) um cliente tão bom não merecia apanhar logo um tomate tão podre. Só que ao contrário daqueles vendidos por aquela senhora na feira, não dava pra me descartar assim, em qualquer lata marrom.

Thainá Mocelin
Enviado por Thainá Mocelin em 01/07/2015
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