CONTEMPLAÇÃO (Escrito sem a letra i)

TRECHO DO MEU LIVRO "OPÚSCULO À CONTEMPLAÇÃO"

(ESCRITO SEM A LETRA I).

ISBN: 978-65-00-05242-8

Contemplação

Certa vez, numa manhã fresca e agradável de um comum outono, quando eu andava calmamente descalço e despreocupado sobre a verde relva por entre as belas árvores frondosas do Parque do Carmo – encontrado na zona leste de São Paulo –, um valoroso senhor – de calça jeans desbotada, sapatos marrons extremamente surrados e um boné, também surrado, de um clube de pesca – chamado Samuel, me falou que a contemplação não passa de um estado em que abandonamos o nosso eu...

Ao escutá-lo, numerosas perguntas farfalharam em meu pensamento, e logo após alguns segundos, expus uma delas:

– Senhor Samuel, desculpe-me por tal observação, mas eu absolutamente não entendo como nós podemos abandonar o nosso eu...

– Meu caro jovem, você não cometeu falta alguma para que tenha que se desculpar; não se preocupe... Vamos nos sentar naquele banco – de um velho azul já enferrujado – que conversamos melhor... – seu Samuel falou-me, já rumando para o tal banco ao qual convocara-me.

Antes que ele retomasse a conversa, me pus à frente com outra pergunta:

– Às vezes, perco-me nas observações que faço do entorno, do mundo, de um pôr-do-sol, como se tudo parasse e houvesse apenas eu e o que eu observo... Tal momento é o que o senhor chama de abandonar o nosso eu?

– Depende...

– Depende do quê?

– Depende de como você absorve o objeto que observa... Preste atenção... Há o olhar que usualmente vaga frente a uma cena só porque tal cena o apraz, como um pôr-do-sol, por exemplo; e há o olhar atento, concentrado, que apreende o que há de majestoso em tal cena; e este segundo ato que é o contemplar...

– Não compreendo a dessemelhança entre os observares...

– Eu entendo... Essa questão não é mesmo tão clara... Mas vamos lá... O estado de contemplação surge quando a nossa alma suspende absolutamente a reflexão e apenas observamos...

– Mas co?...

– Calma... Sem pressa... A explanação não está conclusa – ele me cortou. – O ato de contemplar, corretamente, é quando o nosso ser se desapega dele mesmo e se conecta ao todo, sem fazer julgamento algum defronte de um outro ou do mundo lá fora – o senhor respondeu-me. E, logo após, completou:

– Veja aquele pedrês e grande pássaro, por exemplo, que voa belamente lá na frente – ele apontou-me uma ave que rasava sobre o lago do parque... Está vendo?

– Claro... Mas o que tem a ver o voo daquele pássaro?

– Calma, garoto!... Você é deveras desassossegado... Calma!... A pressa não cabe no ato de contemplar... Não atropele o tempo... Cada ser tem o seu, e não devemos subjugar todo o resto ao nosso tempo... Mas voltemos ao pássaro...

– Está certo... Desculpe-me por meu afobamento...

– Sem problemas... Mas preste atenção e, sobretudo, calma... Quando observo aquele pássaro, ou qualquer outro ente, como objeto de contemplação, eu não me pergunto nada sobre ele, não o estudo, não o recebo pela razão, não faço reflexão alguma sobre ele, apenas o observo, apenas constato e prezo o seu suave e gostoso planar a rasgar o céu por entre encantadoras nuvens brancas. Nuvens que não são as de ontem, como também, essas mesmas nuvens, é certo que não serão as de amanhã... E é justamente por ter a certeza desse dado é que paramos para contemplar algo...

– Neste momento, talvez por causa dos poucos anos que tenho, não posso compreender o que me falas, seu Samuel... Não alcanço tal reflexão mesmo com tantas perguntas se avolumando em meus pensamentos ...

– Eu entendo... Mas o que você deve ter em mente é que nós só contemplamos algo porque temos a certeza de que no mundo há e sempre haverá o novo; de que as mudanças são constantes... Nós, absolutamente, não paramos para contemplar algo que já tenha passado pela razão...

– É porque nós paramos de fazer perguntas quando temos a certeza sobre algo ou pensamos já saber a resposta, não é?

– Exato! Mas tenha bastante calma... Desencha tua mente, abandone por um momento as reflexões... Tente devanear... Relaxe!... Esqueça um pouco da razão… Mergulhe sem medo e embrenhe-se nas profundezas da abstração e conceda a condução por ela. Entregue-se completamente aos numerosos sons… Às cores… Aos tons… Perceba o suave e gostoso toque do vento em teu rosto… Puxe profunda e lentamente um pouco de ar, e solte-o também lentamente… Apenas preste atenção ao presente… Ao teu lado… Ao outro… Ao mundo... Remova completamente de tua mente os pensamentos passados e as esperanças futuras – o senhor Samuel emendou.

– Nossa! É assombroso como o tal do costume tem um enorme e assustador poder de fechar os nossos olhos e o nosso coração...

– Correto!... Você está começando a compreender a questão... O costume nos traz prejulgamentos e, estes, são como sombras a velar todo novo que nos é apresentado.

– Às vezes, eu tenho a sensação de que tudo o que não requer uma grande reflexão nos parece banal, sem valor algum... Parece que os declarados avanços ao longo dos séculos atenuaram as nossas profundas sensações... Paramos de prezar pelo trabalho elaborado com as mãos e pelo tempo devotado em algo... Parece que trocamos o esmero no fazer com calma pela demente busca pelo lucro e o emprego de métodos em tudo... Já não buscamos, e faz tempo, o belo ou bom em quase nada que fazemos...

– Justamente! E a beleza da contemplação é justamente essa: nos desprendermos um pouco da razão... Porque se soubéssemos que todos os pores de sol fossem, na verdade, meramente espelhos de apenas um, qual a graça em contemplá-los? Se as nuvens que se formam hoje são exatamente como as de ontem, por que olhá-las, por que observá-las, por que estudá-las? Por que procurar por algo já encontrado?

– Excelente pensar, seu Samuel... Excelente e belo pensar...

– Mas além da enorme beleza e do grande prazer que há no ato de contemplar, meu caro jovem, a contemplação também é uma valorosa e fundamental porta para o saber. E é o que bastantes doutos desprezam.

– Mas não é só por gozo que contemplamos? Não é só para termos um momento que nos apraz e nos afasta das preocupações correntes?

– De modo algum! A contemplação não só nos apraz, como também nos congraça com o que há de sagrado no real, além de também ser uma valorosa porta para o saber.

– Como pode ser uma porta para o saber se o senhor falou que no momento da contemplação nós devemos abandonar a reflexão e as perguntam que surgem?

– Meu jovem, os grandes pensadores do passado já falavam: só aqueles que contemplam sabem que não se pode saber tudo e, exatamente por causa de tal constatação, seguem eternamente a busca... Só quem contempla segue fazendo perguntas... Os grandes homens do saber só chegaram às valorosas descobertas porque, além de usarem a mente, também contemplaram... Quem contempla é porque sabe que a cada segundo a nuvem muda e, sempre que olhá-la, será outra. Quem não contempla é porque acha que já conhece tudo de nuvem; ou porque olha para uma nuvem e fala: “é só uma nuvem”... Ou seja, o homem que é amante do saber e não desfruta do ato de contemplar só pode ser um tremendo de um soberbo ou um completo estulto.

– Mas é capaz que haja algum homem no mundo que absolutamente não contemple pelo menos em algum momento?

– Não! O ato de contemplar faz parte da natureza do ser humano, mas a grande parte das pessoas só apreende o deslumbramento do ato de contemplar; só o prazer de estar frente a algo belo... É raro quem contemple da forma correta, quem realmente use esse momento como fonte de saber ou como um momento de alcançar o que há de supremo em tal fato ou cena que se apresenta... E aqueles que não contemplam corretamente – a meu ver – são justamente aqueles que portam a soberba do saber pleno, aqueles apegados às vãs certezas que não são certezas, aqueles que creem que o mundo, que o todo, pode ser absolutamente mensurado; aqueles descrentes com o acaso, com o novo… com o raro...

– Bem profundo e adorável... Mas bem confuso também, seu Samuel; pelo menos a meu ver e à pouca bagagem que possuo... Eu não supunha que algo que parece tão banal como o observar de um pássaro pudesse trazer tantas observações como essas...

– Não se culpe... Você não está desacompanhado em tal postura...

– Nunca me pus frente a nada desse modo...

– Relaxe!... Você terá tua chance para tal... Mas lembre-se sempre: A beleza de contemplar um pássaro ao rasgar o céu está justamente no fato de não sabermos se ele baterá as asas para a esquerda ou para o outro lado... ou se ele mergulhará… ou se dará um rasante para o alto outra vez... – ele completou.

– É verdade, seu Samuel... Agora eu começo a compreender um pouco... Pensando em tuas palavras e olhando ao redor, eu percebo que um mundo sem surpresas é um mundo chato...

– Na verdade, um mundo onde não haja surpresa alguma é um mundo de engano, um completo e meloso embuste... Mas tem gente que acha que dá para calcular até o exato momento e o lugar que repousará uma pequena folha que acabou de desprender-se daquela frondosa e amarela árvore que vemos lá no morro, meu jovem... Eu não, graças a Deus... Não tenho as respostas para tudo e, absolutamente, eu não quero respostas para tudo... Eu quero permanecer sempre a fazer perguntas, mas também quero crer no velado e no sagrado, que é extremamente encantador... Eu quero ter fé também… Eu quero ter fé...

– Seu Samuel, por que a grande parte dos homens que possuem um enorme saber acham que ter fé é para os tolos, como se uma anulasse a outra?

– Por extrema devoção à razão humana, ou em outras palavras, por pura soberba, meu jovem... Pura soberba... Mas na verdade, a meu ver, uma pessoa que pensa desse modo só detém algum estudo acumulado, uma douta cultura apenas, o que não tem nada a ver com o saber... Há grandes homens analfabetos com um enorme saber, como também há numerosos doutores com grande estudo acumulado mas pouco saber... O que é tremendamente uma pena... Ao fazermos perguntas não há certeza de que obteremos respostas acabadas para todas... Como Platão nos mostrou por numerosas vezes... E essa pretensão de querer obter respostas para tudo é que é o grande pecado do homem... Fomos acostumados a achar que a razão pode enquadrar tudo em seu escasso alcance... Colocamos a razão num enorme trono de ouro reluzente e nos esquecemos de perceber; nos esquecemos de apenas absorver do mundo o que o mundo nos oferece cruamente, nuamente... belamente... – seu Samuel falou.

– A grande saga dos homens: perguntas e respostas.

– Exatamente... Mas o problema está justamente nas respostas...

– Não entendo...

– Quando um homem que ama o saber encontra uma resposta, ele segue perguntando, sem cessar; nunca perde o encanto, nunca se contenta... Já quando um homem tolo acha uma resposta, ele decreta que assunto já está encerrado e para de perguntar... E por essa razão é que contemplamos pouco... Estamos absurdamente presos aos números, loucamente presos à maçã do Éden, às fórmulas, às certezas, e quase que completamente afastados e separados do todo, justamente porque queremos subjugar o todo aos nossos pés... Queremos que o todo se adeque aos nossos desejos e quereres... Queremos sugar do mundo só o que preenche alguma escassez nossa e o que não serve para tanto nos parece descartável. Uma tremenda burrada… Porque quando temos a certeza de que podemos calcular tudo, paramos de buscar… É certo e extremamente claro que é uma frustrante e eterna busca… Mas devemos buscar, sempre!... E não se esqueça nunca, absolutamente nunca desse detalhe, meu caro jovem... – o seu Samuel encerrou sua fala, olhando-me profundamente nos olhos... Levantou-se com a calma de um velho que já não tem os músculos tão fortes, olhou uma outra vez para o belo lago, acenou levemente com o seu boné e logo após afastou-se lentamente, sem ao menos dar uma olhada para trás.

(...)

Elder Prates
Enviado por Elder Prates em 19/09/2020
Reeditado em 24/09/2020
Código do texto: T7067064
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