O Cinqüenta

O homem que aparece na fotografia que ilustra este texto sou eu, sentado nos batentes de uma esquina do bairro das Quintas, refazendo uma cena do dia 2 de janeiro de 1966. Hoje faz cinqüenta anos que cheguei, em definitivo, a Natal. Chovia.

Saímos de São Tomé na madrugada. Chovia fino. Tivemos que vir na parte traseira do "misto", pois não havia lugar na boléia. Mamãe tinha pressa de sair daquele lugar. Já havíamos saído apressados de Barcelona, em 1964. Mamãe vivia um drama familiar. Suas escolhas inconsequentes haviam destruído o nosso lar. Mas não quero aqui encontrar ou apontar culpados. Fazer julgamentos, sentenciá-los.

Os principais personagens, protagonistas do começo de minha história já faleceram. Não teriam como fazer suas defesas, falar de seus motivos, o porquê de terem se comportado com tanta “brutalidade”. Mas o que criaram para minha mãe (incluindo ela própria), refletiu diretamente em mim. Faz parte de minha História de Vida.

Crianças sempre viverão sob influência das decisões dos adultos. Algumas dessas decisões são desastrosas, e deixam marcas para a vida toda. A vida é feita de escolhas. Mamãe apostou e perdeu.

O carro varou a madrugada sacolejando na estrada de 120 quilômetros até a capital. Sentamos em bancos de madeira, encostados na grade lateral. Próximo a mim vinham bodes, carneiros, cabras e porcos. Alguém puxou uma lona amenizando a chuva que aumentava à medida em que nos aproximávamos do litoral.

Naquela época a viagem levava cerca de três horas. Só encontrávamos a “pista” no lugar denominado “As Marias”, no município de Macaíba. Até lá, o carro desviava de lama, riachos cheios, poças d’água.

O dia claro nos alcançou na metade do caminho. Naquela época a entrada de Natal, para quem vinha do Sertão, era no KM 6. Havia uma "corrente" (posto fiscal). Guardas do governo faziam inspeções nos veículos e em seguida baixavam a corrente autorizando a entrada na cidade.

Cerca de uns três, quatro quilômetros em direção ao centro da cidade, o carro parou na Rua Dr. Mario Negócio, esquina com a Rua São Geraldo - também chamada de “Rua Nova”. Descemos. Eu estava com fome, não me lembro de ter comido algo durante a viagem.

Toda a “mobília” de mamãe foi descida: um baú com louças e outros utensílios, e uma mala com nossas roupas. Eu vestia um conjuntinho azul: camisa e uma bermuda, com bolsos “faca”, um pouco acima dos joelhos e sapatos pretos. Lembro que minha camisa tinha quatro bolsos - não sei para quê, se eu não tinha dinheiro.

Meu Simca Chambord (azul com pneus pretos) estava em minhas mãos. Imediatamente esfreguei o carrinho naqueles batentes, totalmente alheio aos reais acontecimentos. As crianças tem a incrível capacidade de brincar, mesmo nas adversidades...

Os animais também foram descarregados do caminhão-misto. Um jovem os esperava com cordas nas mãos. A medida que os bichos desciam, ele os amarrava em duplas. O dono dos animais, que viajara conosco, também preparava as cordas. Mamãe sentada, sem saber o que fazer, ou para onde ir, de olho em minhas ações. Depois que todos os animais foram descarregados, o caminhão partiu.

Os dois homens ficaram envolvidos com seus animais. Um tempo depois o mais velho se aproximou de mamãe, perguntando se ela esperava alguém. Sua resposta foram lágrimas. Estava sozinha naquele momento. Não tinha a quem recorrer. Chorei também, embora não soubesse o porquê. Refeita, ela explicou que não tinha para onde ir. Estava ali sem destino.

Aquele homem falou com o outro. Disse que lhe esperasse, pois precisava ir à sua casa. Lá ele conversou com sua esposa. Falou de uma mulher, com uma criança, que viera no "misto". Estava sentada na calçada da esquina da Rua São Geraldo e não tinha para onde ir. Num primeiro momento a mulher pensou se tratar de um “contrabando” do marido, com um filho dele. Eu nunca soube como havia sido o verdadeiro dialogo entre o casal Zuza Déro e Rita.

Ele voltou. Sua Filha Riselda vinha junto, de cara fechada. A dúvida lhe deu aquela reação no semblante, embora seu pai fosse um homem “sério”. A moça era noiva daquele jovem que ficara com os animas, Francisco (já falecido). Seu apelido era “Chico Bodinho” - ex-craque do Clube Atlético Potiguar, um dos times da capital.

Seu Zuza disse a mamãe que sua casa era humilde, mas que iria nos abrigar até que ela pudesse se organizar. Moramos por dois anos com aquela família, na Rua Santa Luzia no bairro das Quintas. Aliás, saímos de lá sob protestos. Até o fim dos anos 1980, jamais perdemos o contato com eles (ambos já falecidos). Sempre nos recebiam com alegria e reclamavam muito de nossa demora em visitá-los.

Desejo muito, de todo o meu coração, que os “Seres de Luz” os tenham em um lugar destinado àqueles que fizeram o bem ao seu próximo, pois eu jamais pagarei o que lhes devo.

Quanto a meus dias em Natal, não posso dizer que são, para mim, a “Oitava Maravilha do Mundo”. A “Cidade dos Magos” é um lugar de milionários. Não é fácil viver aqui. Por isso, jamais tive a ilusão de dizer: “Natal, cidade que me acolheu”. Eu estou aqui por necessidade. Ou de metido mesmo! Aquela “hospitalidade”, de que tanto falam os turistas, comigo não funcionou muito bem. Salvo raras, raríssimas exceções, como a hospitalidade daquele casal, Zuza e Rita.

[Chico Potengy]

Texto de 2 de janeiro de 2016.

Chico Potengy
Enviado por Chico Potengy em 02/01/2024
Reeditado em 04/01/2024
Código do texto: T7967636
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