Relicário
Relicário
Encostado no canto da sala o velho baú das lembranças,
relicário de esperanças onde o hábito mostra a santa,
onde o escapulário manchado pelos sonhos de criança
faz escolhas diante da idade tão frágil da minha vontade.
Escolheu por mim, não pedi para servir a Deus,
não o vejo diante dos muros altos que separam a fome
dos miseráveis meninos que se alimentam dos restos
jogados fora pela torre linda e imponente de vocês.
Torre alta e bela, onde a queda será singela,
pois resgata pedra sobre pedra,
a tela do artista que pinta as dores da minha vida.
O Anjo preso na jaula aberta mostra imagens santificadas,
as mãos limpas e o coração sujo, eu escolho o luto,
o branco da noiva adornada e perfumada não cai bem em mim,
sou flor desbotada e amassada que não entende o mistério
que carrego em minha pequena alma.
Mãe, o relicário da sua saudade não compreende a
minha calma, não alimenta meus sentimentos,
não estimula meus sentidos.
Não me dê como sacrifício pelos seus pecados,
eles aconteceram antes de eu nascer,
não sou instrumento de resgate,
venho apenas ver o futuro e o passado que os homens
vem tentando esconder, vejo imagens, vejo cartas
de um baralho, vejo anjos vestidos de armas.
Lá fora pessoas são queimadas em nome de Deus,
da santa santissíma trindade eu não quero tomar parte,
tudo que vai contra o poder é aniquilado.
Desculpe, mas não posso vestir esse hábito.
Sou muito menina para ter lembranças,
todos meus sonhos são pecados,
o jovem montado no cavalo branco que prometeu
me resgatar, deixou uma flor de saudade.
Nunca mais vi seu rosto em meus sonhos, acho que
tenho que mudar meus hábitos,
cansei de viver encarcerada, entre a cruz e a espada.
Guardo a minha fé, minha crença na existência do amor,
minha reverência a natureza, e a beleza escondida na
flor e no perfume que se esconde no ar.
Adeus, deixo a Torre erguida sobre a dor e o medo,
sei que não existe alicerce perfeito,
mas também sei que nesse pedestal,
não mais haverá imagens e ouro,
nas cartas a Torre e o Juíz se encontraram,
não haverá mais sacrifícios, serão três dias de
escuridão antes do juizo final.
Levo a roupa do corpo e os ensinamentos
dos livros proíbidos, como lembrança na bolsa
guardo um pergaminho.
Ando pelo caminho, quando um jovem me estende a mão,
diz com um sorriso nos lábios,
que uma senhora viu nas cartas seu destino,
e na Torre que não mais existiria,
ele encontraria o amor da sua vida.
Então eu ri, e disse: eu adoro cartas,
eu adoro magia.
Ricardo, 04/12/08.