Os ratos e o ano novo

A chuva que cai ininterruptamente aqui sobre o bairro de Humberto Antunes, Mendes, Estado do Rio de Janeiro, desde ontem pela manhã é cinematográfica. Chuvas ininterruptas me dão a sensação de filme, ou de livro. Dão uma sensação de afastamento da realidade. Tudo está aqui. A ferrovia está aqui. As pequenas matas – aqui quase tudo é pequeno – estão aqui. As ruas de paralelepípedo – muita gente nem sabe o que é uma rua de paralelepípedo – estão aqui. Os mesmos vizinhos de sempre. O abissal silêncio das madrugadas, que só é interrompido ora ou outra pelas locomotivas ou pela música dos sábados – pela péssima e barulhenta música dos sábados. Tudo está tão “aqui” que faz com que as coisas se pareçam com um filme que é reapresentado por tempo indefinido, como aconteceu nos cinemas com Blade Runner, por exemplo, que ficou em cartaz por muito tempo, voltando e voltando. Blade Runner, um filme extraordinário. Neste filme também chove muito. As chuvas ácidas de um dos possíveis futuros preconizados pelo cinema.

Ontem, quarta-feira, um som no quintal quebrou o silêncio: Lisbela, minha amiguinha canina, matava mais um rato. São milhões de anos de instinto predatório não perdidos, ali, no DNA de Lisbela. Mais um rato enorme. O segundo em três dias. Ela sabe que nós aqui em casa ficamos agradecidos, afinal ratos são incômodos e transmitem doença – ratos já dizimaram milhões de homens no curso da história. E sei que ela, Lisbela, ficou feliz e orgulhosa com sua performance assassina. O terreno ao lado da minha casa abriga ratos. É bonito ver o verde do terreno, e olhar o morro e o céu por entre as plantas que nele há e crescem em pura força verde, mas há certos inconvenientes, como os ratos e insetos morando ali. De manhã, quando, na minha incumbência masculina, fui pegar o bicho e colocar em duas sacolas – quando o correto seria enterrá-lo – eu percebi que o rato é um animal muito bonito. Bonito mesmo. A sua cauda nem tanto. Acho que o rato é um animal que não ficou numa boa no processo de urbanização advindo com o século dezenove. Acho que homem e rato têm uma grande dívida um com o outro. Muito embora creio que o bichinho esteja em desvantagem – assim como os palestinos em relação aos judeus (parêntese importante este, pois preciso ressaltar que palestinos não são ratos, e que em muitos momentos, na dada questão geo-política, judeus foram mais ratos, num ambiente em que todos estão certos e errados ao mesmo tempo, sejam homens ou homens-rato, semitas ou anglo-saxãos). De toda forma, acho que ele, o rato, ainda está em melhores condições que a vaca, o porco, a galinha e até mesmo que o cavalo, que é usado pelo homem com certa indiferença. O rato tem sua independência. Tem sua dignidade. Um certo direito à marginalidade. Nem isso os outros animais citados possuem, já que são tratados muito mais como coisas que como bichos.

Então lá fui até um dos latões do bairro com as sacolas de lixo não selecionado – como é o costume por aqui – com o bichinho dentro de uma delas. Ecologicamente incorreto, porém dentro do senso comum local – ainda que eu seja um pequeno homem a lutar, em algumas situações, contra o senso comum local. Na volta, o que vejo em frente ao meu portão? Um passarinho morto. Puxa vida. Não dá pra ter menos mortes num dia como o de hoje, com essa chuva que mata sem parar pessoas nas casas mal feitas, construídas em lugares mal habitáveis por todo o país? Levanta-se aqui uma suspeita de bruxaria no tocante ao pequeno pássaro morto. Certa vez havia sete cigarros no chão apontados para o meu portão, ordenados cuidadosamente, como se apontando pra minha casa como flechas. Sempre houve muita macumba no meu bairro. Acho um barato as pessoas crerem nisso. Digo “um barato”, numa visão antropológica hiper-relativista e tolerante, pois, na verdade, sou ateu e acho que elas deveriam se ocupar mais com ciência, com trabalho, com arte e com prazer.

Com os ratos e o passarinho e as pessoas vítimas dos desastres pela chuva no famigerado sistema de loteamento camponês que insiste em encurralar seres humanos em habitações pouco-humanas para os padrões atuais de humanidade que estas mesmas pessoas mortas estavam cansadas de ver nas novelas, morre também o ano de 2009. É Preciso. Tem que ser assim. Pra nascer 2010. Mas o que podemos fazer pra 2010 nascer feliz? Encher a cara? Beber e beber e beber? Comer e comer e comer? A frase é legal e gosto de ouvir e repetir: “estamos de parabéns!”. Celebremos a morte e a vida do calendário. Eu, aqui, com minhas mãos com o olor de dessalgar bacalhau, tecendo minhas impressões críticas com minha metralhadora giratória de brinquedo com inofensivas bolinhas coloridas. Um hipócrita a mais. Tenho convencido um amigo a tornar-se vegetariano – pois admiro demais os vegetarianos –, falando pra ele coisas como a nossa hipocrisia em querer salvar baleias enquanto comermos bois como se fossem estes maçãs caídas do pé. Quem disse que um boi vale menos que uma baleia? O amigo disse que está indo por partes, e que já não come mais aves e pode olhá-las agora sem culpa. Que bonito isso! E eu na cozinha temperando uma ave pra assar. Sou culpado. Sou mantenedor do sistema de matança capitalista industrial. Sou poluidor. Sou hipócrita. Sou escravo. Sou um homem. E não sou muito diferente do rato que foi assassinado pela Lisbela. Tenho pena do rato. Tenho pena de quase tudo.

Preciso de um final feliz para esse texto, pra ver se o ano também termina/começa bem. Se não vão achar quer sou pessimista. E este ano foi, na verdade, muito bom pra mim. Final feliz é bom. Talvez finais felizes sejam hipócritas. Talvez não. Talvez eles sejam fruto da nossa eterna necessidade de sonhar. Essa mesma necessidade que fez a ciência e a arte – a cultura, por fim. A nossa necessária e companheira inseparável imaginação. A necessidade de pensar no que é bom, a aperfeiçoá-lo. Preferencialmente no que seja bom para mais de uma pessoa, já que, como disse o poeta “é impossível ser feliz sozinho”. Então vou olhar para meu bairro imutável como bela fotografia amarelada e ver que ele é um belo lugar, com gente feia e gente bonita, como qualquer outro lugar. Com homens, mulheres e ratos. E com uma bela chuva de final de ano. Uma chuva que parece estar saindo do terceiro livro da série Crepúsculo que minha menina acabou de ler, enquanto eu releio, com mais contemplação que outrora, o monótono – porém lindo – On The Road, a emblemática obra de Jack Kerouack que tanto inspirou os malucos do mundo inteiro, chegando até mim.Venha o porvir, que eu quero é mais. Mais do bom e do melhor, e para o maior número possível de seres vivos e mortos.

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