DOIS VALORES DESCONHECIDOS - longa mensagem

Prezado irmão Recantista,

Em minhas peregrinações pelo mundo sempre fui acompanhado por dois valores desconhecidos. Eu só os descobri por ocasião de um encontro que tive (penso eu) com um grande filósofo. O fato ocorreu numa noite, quando eu repousava sob uma árvore após ter

caminhado uma longa estrada nas regiões entre Natalândia e Bonfinópolis.

Eu partira da primeira cidade em seu sentido oeste e caminhando por várias horas dei com a subida da serra, chegando ao chapadão, em que por muitos quilômetros eu avistava o horizonte. Por ser uma época em que a safra já fora efetuada, as terras se apresentavam limpas. Nas minhas observações eu via enorme quantidade de gaviões, catando aqui e ali, talvez algum inseto, ou pequenos animais.

Meu deslocamento por aquelas plagas não tinha um destino certo, contudo eu me propus a dar umas voltas naquela região alta. Após caminhar muitas horas, a tarde caiu e a noite chegou. Por me encontrar numa região elevada, eu via as luzes de algumas cidades, entre elas, numa longa distância, sentido oeste, a bela Unaí.

A escuridão me dava condições de contemplar as miríades de estrelas da abóbada celeste sob a qual me encontrava. Meu intuito naquela caminhada não seria andar a noite, porém como nas demais vezes, ali também ocorreu de anoitecer sem que eu tivesse encontrado residências, ou alguma fazenda, para que eu viesse solicitar um abrigo. Só restava-me parar em algum ponto que fosse mais aconchegante e dormir, já que a melhor coisa que um caminhante poderia fazer, naquelas condições seria ficar alheio ao mundo. Com aquele pensamento e tendo minha visão se acostumado com a escuridão da noite passei a procurar à beira da estrada em lugar que eu pudesse repousar.

Para quem conhece aquela região, sabe que as cidades são distantes umas das outras. Do ponto onde me encontrava eu visualizava aquela de onde partira: Natalândia. Não estava tão distante como Unaí. Se a gente descesse as íngremes ribanceiras do chapadão no sentido sul, em linha reta, creio que numas quatro horas chegaria lá.

O fato é que mesmo estando cansado da caminhada daquele dia, fiquei um bom tempo observando, hora as estrelas, hora as luzes de algum povoado, enfim, até o momento em que peguei no sono, pude fazer muitas observações, ouvir pios de corujas, uivos de lobos e principalmente o cantar dos grilos em meio ao mato.

Com o sono a me vencer, talvez em meia hora já estava dormindo e conforme disse, alheio a tudo que me cercava.

Em certa hora do sono pareceu-me sonhar, contudo eu me senti acordado, tendo as mesmas contemplações de quando me pusera a descansar.

Seria alta madrugada, com os olhos abertos eu percebi que alguém estava se aproximando, vindo pela mesma estrada que eu viera. Fiquei ressabiado com aquela aproximação, que a princípio parecia ser um animal, um boi talvez, mas era uma pessoa mesmo. Diante daquele temor e antes que chegasse muito perto, procurei sair do ponto em que me encontrava, me afastando da estrada.

Percebi que tal pessoa parou e notando que ali havia um bom lugar, pôs-se a descansar no mesmo ponto em que eu estivera momentos atrás. Percebi que ele logo dormiu.

Eu me encontrava desperto e pensava na casualidade do indivíduo querer descansar no mesmo lugar em que eu estivera. Fiquei curioso, afinal o camarada devia ser alguém que estava se aventurando como eu, a andar por aquelas estradas. Pelo que eu sabia a estrada ligava Unaí com Bonfinópolis, uma centena de quilômetros pela frente, todavia eu só pretendia visitar casas ou fazendas naquele chapadão.

E aquele homem? Seria um trabalhador das fazendas da região? Minha curiosidade me levou a ficar por ali. Eu não iria dormir mais, pois pretendia conhecer o camarada. Com certeza acordaria com o dia claro, e sem temor algum eu poderia conversar com ele.

Com o passar das horas a alva foi aparecendo. Ao leste eu via a tênue claridade do sol, ainda por surgir, contudo seu esplendor já se fazia notar no rubro céu matutino.

Eu ficara num ponto afastado no aguardo daquele meu semelhante acordar, vindo isto a ocorrer sem que o sol tivesse surgido ainda no horizonte. A luz do dia estava por inundar o mundo em instantes. Não resistindo o desejo em saber quem era aquele homem, falei desde o lugar em que encontrava:

-Bom dia amigo.

-Oh! O senhor estava por aqui?

-Sim, até lhe cedi minha cama!

-Bem vi que esse buraco estava quentinho. Mas quem é o senhor?

-Sou conhecido por Coimbra “o peregrino de Luzirmil”. Mas pode me chamar de Luzirmil.

-Ah! Muito bem. Eu me chamo Tomás de Aquino. Saí de casa ontem a noite para dar umas voltas e pretendia retornar antes do dia amanhecer.

-O senhor mora nessa região?

-Não, amigo. Moro lá em cima – disse apontando o céu – entre as estrelas!

-Ora, estamos falando sério. Morar entre as estrelas não é próprio de um ser humano – falei.

-Pois é. Eu porém resido nas nebulosas entre elas. Mas o que o levou a estar pousando a beira da via dentro da noite?

-Ah! Tenho gosto em andar a pé pelas estradas e muitas vezes anoitece sem que eu perceba, ocorrendo então de parar num ponto qualquer para repousar.

-Admiro seu procedimento. Tens valores desconhecidos que nem você mesmo sabe!

-Não compreendi. Que valor poderia um peregrino, cujo destino dado por Deus é andar de uma parte para outra, as vezes sem sentido?

-Existem dois valores que acompanha o homem em sua trajetória de vida, ele porém não sabe, pois se soubesse lhe seria descortinado um horizonte tão amplo como este amanhecer que estamos contemplando!

-Que valores são esses?

-Um é vertical, o outro é horizontal, sendo eles os geradores dos objetivos dos nossos ideais!

-Calma lá! Deixe-me raciocinar: Tais valores formariam o desenho de uma cruz! Seria isto?

-Exatamente! Entretanto os dois valores a que me refiro, estão enquadrados dentro das palavras não e sim. O “não” seria o risco vertical, sendo, entretanto um ponto vago para ser preenchido pelo “sim” para a realização de nossos objetivos, culminando numa reta horizontal!

-Confesso que ainda estou perdido em seu raciocínio – falei.

-Luzirmil, um valor vem do alto até as profundezas, o outro vai de um ponto médio de um a outro no horizonte; o primeiro é do comando o outro é da existência do Universo!

-Mas qual a descoberta que o homem poderia fazer para se enquadrar no poder desses valores?

-A objetividade, amigo, se relaciona com o comando. Nem um nem outro tem condições de serem usados em separados.

-Bem, eu ouvi, porém não compreendi. Mas diga-me: de onde vens e para onde vais?

-Eu desci das altas neblinas a cinco parsecs daqui; viajei tal distância e objetivamente te encontrei aqui. Ambos dormimos à beira da estrada e acordamos ao amanhecer; você tem seus ideais, e se fosse um encontro humano casual eu teria que ter os meus, porém eles são perpendiculares em relação um ao outro. Entretanto são valores estranhos. Gostaria de os descobrir?

-Ora. Como descobrir coisas tão misteriosas? Em suma, nosso tempo de conversa está sendo perdido – falei – não estou tirando informação alguma de seu conteúdo.

-Luzirmil, a filosofia de meus assuntos é profunda demais para seus dias atuais, porém se adaptares no entendimento dos valores do sim e do não ao ângulo de sua vida, de seus atos e seus objetivos, certamente terás uma superioridade de raciocínio em relação aos teus semelhantes. Tudo que fizeres fundamentado com inteligência, na hora de dizer não, ou dizer sim, certamente terão seus encaixes, e tudo que se encaixa, não tem sobras pertinentes, nem para o negativo nem para o positivo. Os dois valores poderão ser distribuídos numa gama larga de benefícios.

-Mas que valores são estes? Eu já me fundamento em dizer não, ou dizer sim, nas horas certas, simplesmente não estou entendendo por que surgiu esta polêmica, justamente numa madrugada quando eu estava só, em meu repouso noturno.

-Entendas que somos dois estranhos um para o outro. Su-ponhamos que eu seja o não, e você, o sim. Que você existe e eu não. Meus objetivos não teriam razão de ser, os seus porém são cheios de lógicas, porém contendo subjetividades impróprias para realizá-los. Precisas dos dois poderes, um é a persistência em seus ideais, o outro é a desistência, que também tem seus pontos lógicos no maleável. Em suma, meu amigo, os dois poderes estranhos que estão ao alcance do homem torna-o num valente, lhe dando coragem, não para enfrentar lutas contra a carne e o sangue, mas lutar pelo ideal em comum, daqueles que os possuem, e para possuí-los, somente com a filosofia de Jesus Cristo.

-Preciso ter o poder de persistir e o poder de desistir?

-Sim, o homem já perdeu muito por não persistir, porém perdeu muito mais por não saber desistir. Carregue contigo esses dois valores. Até breve amigo – dizendo isto, Tomás de Aquino foi caminhando até sumir no horizonte, coincidindo com a noite que se ia!

LUZIRMIL - FIM DE: OS DOIS VALORES