Zen Budismo: Pecado Original x Mente Original


Num acidente de trânsito, algumas pessoas sofrem um trauma tão profundo que podem desenvolver amnésia. Ainda que o corpo esteja intacto, a vítima temporariamente nada sabe a respeito de si, esquecendo-se inteiramente sobre sua “verdadeira identidade”. É possível, inclusive, que este esquecimento dure por toda sua existência.

O trauma da existência, com o nascimento, doença, envelhecimento, morte e a luta para sobreviver, turva e gerando obstruções na mente (impotência, ansiedade, medo, tristeza, ganância e raiva, e etc.) de forma que os seres humanos permanecem indefinidamente esquecidos da mente original, encoberta dentro de si mesmos, como um sol ofuscado pela massa de nuvens cinzentas resultando na obstrução de seu brilho, originalmente radiante e luminoso.

Como o devido tratamento, uma pessoa vítima de amnésia pode recuperar gradativamente sua condição anterior, desobstruindo as lembranças e restaurando a memória. De igual maneira, ofuscada pela massa de preconceitos, suposições e emoções conflitantes, qualquer ser humano pode recuperar sua verdadeira natureza, perdida no tempo, restaurando o frescor e a pureza da mente original.
 
Quando isto se dá todos os conflitos extinguem-se, não haverá mais dúvidas, toda divisão e conflito são extintos, permitindo que a mente clara e radiante surja e nos liberte de todas as confusões e delírios do ego (mente iludida).

O ser liberto será livre, não experimentando ansiedade, medo, desejos nocivos e raiva, a mente clara é penetrante e, por isso mesmo, obtém as condições requeridas para obter a sabedoria profunda. Muitas igrejas falam do pecado original. Nesta condição todos os seres humanos, desde a condição de indefesos bebês, até o momento da morte, trazem dentro do si o “pecado original”. Isto é muito significativo, pois, “faça o que fizer”, essa mancha não pode ser removida.

Com esse conceito os seres humanos terão dificuldades de terem uma vida suave e harmônica, por que o mais pesado dos fardos (peso da culpa da afronta a Deus) estará sobre suas costas por toda a vida, sejam pessoas boas ou más. Mesmo que tenham uma vida justa e digna.

A concepção de culpa original planta na mente das pessoas a impotência para purificarem seus pensamentos e suas ações. Por exemplo, nas cadeias e penitenciárias, o inferno parece ser desfecho inevitável para os delinquentes, pois adicionaram culpas e mais culpas a sua culpa inata, de forma que a dívida espiritual seja assombrosa, e isso emerge do inconsciente delas como sensação de impossibilidade de mudança, gerando sentimentos de impotência e derrotismo. 

O ensinamento da culpa original apresenta o ser humano como originalmente imundo, ou seja, sua base é suja e corrompida, criando uma série de complicações, cujos desdobramentos podem ser pressentidos a partir das seguintes analogias:

·         Uma vida edificada a partir da culpa original é como ter que construir um magnífico edifício com os alicerces fundados em solo lamacento e instável;

·         Escrever a história de nossas vidas a partir da condição da impureza inata é como receber uma folha de papel comprometida pela imundície, na qual tenhamos de escrever algo como uma história de pureza e dignidade;         
       
Por outro lado, a constatação da mente original intocada e pura, mas apenas encoberta por obstruções, como a massa de pensamentos confusos nos acena com a possibilidade do recomeço a partir de qualquer condição, a qualquer tempo.

A mente original, como ensinamento budista, é o chão firme onde podemos edificar nossas existências, é a folha sempre branca que nunca se corrompe, na qual podemos escrever e reescrever a história de nossas vidas, tantas vezes que precisarmos. Para o budismo a limpeza ou desobstrução da mente se dá quando desistimos da vida contaminada de ilusão e dor.

Se não desistimos desta base corrompida, continuaremos a gerar, indefinidamente, aflições diversas.
 Mais como purificar nossas mentes? Para o budismo, a “vergonha” é porta de acesso a purificação mental, processo que nos faz rejeitar os pensamentos deludidos, reavendo pouco a pouco a condição original de pureza, o nosso verdadeiro ponto de partida, pois antecedia a corrupção mental. Esta condição é a mente da clareza e da pureza, que nos libera da confusão e do delírio, saneando o corpo e a existência das aflições.

A vergonha conduz ao arrependimento, o arrependimento conduz a remoção da massa dos pensamentos opressores, condição que gradativamente nos recolocará na serenidade e na capacidade de uma vida estabelecida na pureza da sabedoria e da compaixão. Esse processo é o início do caminho da meditação (silêncio interno), que por fim é a porta da iluminação.   

 A total renovação espiritual nos desobstruirá, liberando o sol interior de radiância e brilho inconfundíveis e poderosos.  Assim, não importa quantos delitos e manchas tenhamos contraídos, se sentirmos a força e as implicações deste preciso ensinamento do Buda, se nos engajarmos neles (decisão) e deles nos esquecermos (plena atenção ao agora), iremos nos curar da amnésia coletiva e restauraremos a “nossa verdadeira identidade”, que nada tem haver com o que absorvemos desde a infância.
 
A flor da mente liberada (consciência pura) será como uma flor de lótus que se ergue do pântano imundo da mente iludida, ostentando beleza e perfume incomparáveis.