O Prisioneiro de DEUS

Existem algumas situações em que nos deparamos com pessoas que nos marcam. Algumas vezes, essas pessoas agem de maneiras tão inesperadas que nos deixam profundamente modificados. Meu relato trata de uma pessoa dessas.

Há muito tempo desempenho o papel de executor para o império romano. Sou natural de Roma, e tenho saudades de lá. Mas, quando fui feito executor fui transferido para a Galiléia, designado a servir naquela região. No início não tinha convicção sobre as execuções. Era hesitante. Por vezes pensei em abandonar o ofício. Mas, não queria ser considerado um insubmisso, ou mesmo um desertor do grandioso império romano. Ninguém era louco em querer um destino como esse.

Conforme o tempo passou me habituei a fazer o que tinha que fazer. Na verdade, foi mais fácil do que poderia prever. Senti minha humanidade se esvair com o passar do tempo. Cada vez menos eu enxergava que era a vida de um ser humano que estava sendo ceifada pelas minhas mãos.

Durante muitos anos foi assim. Até que um dia, um homem bastante singular foi trazido à prisão do Tetrarca. No início, não percebi nada que o diferenciasse dos demais, exceto pelas suas roupas extravagantes. Contudo, logo fiquei sabendo que o próprio Tetrarca o havia colocado em reclusão. Pelo que soube, esse homem havia promovido uma baderna as margens do Jordão, e desafiado, inclusive, o próprio Tetrarca. Mas minha surpresa tendia a aumentar gradativamente conforme eu acompanhava o desenrolar dos fatos. O tetrarca, em pessoa, constantemente descia até o calabouço para conversar com aquele homem. Confesso que sempre que o ouvia, ficava assombrado. E eu não era o único. O governador parecia apreciar sua oratória, pois mesmo tendo saído perturbado em praticamente todas as suas conversas com aquele homem vestido com pêlos de camelo, continuava a voltar.

O discurso do prisioneiro consistia basicamente de um assunto. O Reino de DEUS. Ele não cansava de bradar a quem pudesse ouvir, mandando-os se arrepender. Dizendo que o Reino de DEUS estava próximo. Falando de um tal nazareno que era o Messias.

Eu mesmo fui em busca desse homem em sua cela diversas vezes para ouvir aquelas palavras, que de algum modo me faziam arder o coração.

Em pouco tempo perdi a confiança que tinha adquirido para realizar meu trabalho de carrasco. Tudo que ouvi daquele homem me incomodava. Sua explanação acerca do arrependimento, do que ele chamava batismo, e do tal nazareno, que agora eu sabia chamava-se JESUS, me deixavam inquieto. Nunca fui uma pessoa religiosa, nem muito dado a assuntos concernentes a crença em um DEUS. Entretanto, com o passar do tempo aprendi um pouco mais sobre a crença dos povos que subjugávamos, mas nada mais do que conhecimento histórico para saciar minha curiosidade.

Contudo, esse homem conseguia abalar o meu íntimo. Parecia que suas palavras não vinham dele, e sim de algo muito maior. Passei semanas tentando assimilar aquilo tudo. Até que um dia algo aconteceu.

Era o aniversário do Tetrarca. Ele, como de costume, deu uma festa grandiosa, com os mais influentes que conseguira reunir e todos a quem quis convidar. Pensei que naquele dia eu poderia parar de pensar um pouco no que ouvia do prisioneiro. Como eu estava enganado. Enquanto todos se divertiam e bebiam muito, buscando agradar o governador, tentei ficar a distância, simplesmente observando o desenrolar das apresentações e degustando do esplendoroso banquete servido. Em um dado momento, a música que estava sendo tocada cessou. Todos pararam para ver do que se tratava. No minuto seguinte, uma nova música começou a encher o salão. Não mais como as que tocavam até então. O que se ouvia agora era um som mais brando, com um ar de mistério, algo que parecia querer trazer à tona a luxúria dos homens. De fato, era essa a intenção. Juntamente com o ritmo da música, eis que surge Salomé, filha do irmão do governador. Usando trajes pouco decorosos, a bela moça dançou para todos, que a olhavam estupefatos, de um modo absolutamente provocante. Me virei em direção ao governador, e pude ver em seus olhos que ele, juntamente com seus convidados pareciam estar em transe pela dança da bela moça.

Quanto a mim, nada me fazia esquecer as coisas que vinha ouvindo nas últimas semanas daquele homem na prisão. Creio que a música deva ter levado pouco mais que cinco minutos. Quando ela acabou, aplausos ensurdecedores irromperam por todo o amplo salão. O Tetrarca, levemente alterado em decorrência do álcool, levantou-se e de maneira entusiasmada batia palmas para a jovem, que agora permanecia em frente à mesa principal, onde os mais importantes sentavam a mesa para comer e assistir às apresentações feitas em homenagem ao Tetrarca. Após os aplausos o silêncio se instaurou. Quebrado apenas pela voz áspera e ligeiramente alterada por causa do excesso de bebida do anfitrião.

- Ah, Salomé. Bravo! Você se tornou uma bela mulher, minha sobrinha, minha filha. Sua graciosidade e beleza são inigualáveis. Nenhuma outra mulher poderia ter dançado da forma que você dançou. Você não apenas agradou a mim e a meus convidados, mas também transformou essa celebração pelo meu aniversário em um espetáculo memorável. Em decorrência disso, eu lhe juro, a você e a todos os que estão aqui presentes, os tendo por testemunhas. Me peça o que você quiser, minha querida Salomé. E ainda que me peça a metade do meu reino, eu te darei.

Nesse instante, burburinhos encheram todo o salão. Todos os convidados demonstraram espanto com o discurso do Tetrarca. Mas lá estava ele, em pé, dando sinal de que não havia se arrependido do que dissera, ou que, mesmo arrependido, não poderia deixar isso transparecer e tampouco voltar a trás.

Educadamente, Salomé solicitou que o governador lhe desse alguns minutos, o que lhe foi concedido. Ao se virar, a bela jovem esticou o pescoço, como que procurando por alguém. Ao pousar os olhos em mim, um sorriso se abriu em seu lindo rosto, e ela começou a vir em minha direção. Fiquei nervoso e apreensivo. Mas, ao se aproximar ela passou por mim. Ao me virar, vi que logo atrás de mim estava Herodias, sua mãe. Não a havia percebido ali, mas de onde estava pude ouvir o breve diálogo entre mãe e filha.

- Me ajude, mamãe - dizia Salomé, num tom inseguro - o que devo pedir?

- Peça a cabeça de João - havia raiva em sua voz.

Aquelas palavras me chocaram. Sabia o que aconteceria se fosse esse o pedido que Salomé fizesse ao Tetrarca Herodes.

- Mas mamãe - retrucou Salomé - João já está encarcerado. Ele não pode mais importuná-la.

- Não me importa. Escute bem, minha filha. Você voltará lá e pedirá a cabeça de João, o batista em um prato imediatamente. Você entendeu?

- Sim, mamãe.

E a jovem voltou em direção a Herodes, onde o mesmo permanecia em pé, esperando-a com o seu pedido.

- Fale, minha linda Salomé. Você já tem o seu pedido a me fazer?

- Sim, meu senhor - disse a jovem, cabisbaixa - eu quero a cabeça de João, o batista imediatamente num prato.

Todos demonstraram espanto ao término das palavras da jovem. Herodes imediatamente virou-se em minha direção, embora eu soubesse que não era a mim que ele observava. Mas a sua mulher, que estava logo atrás de mim. Seu rosto demonstrava um ódio crescente. Ele parecia querer pensar em alguma coisa para não fazer aquilo. Mas eu sabia que o juramento de uma autoridade romana não poderia ser quebrado, especialmente uma vez tendo sido feito sob o testemunho de tantas pessoas influentes. A raiva no rosto do governador se abrandou. O que ficou em evidência fora a tristeza. Eu entendia o que se passava no coração dele. Falar com aquele homem na prisão, de nome João, chamado por muitos de batista, era algo diferente. Não havia como simplesmente ignorar tudo o que aquele homem falava. Alguma força se movia junto das palavras que saiam de sua boca. Eu tinha certeza que, assim como todo o povo o considerava, ele era de fato um profeta de DEUS. E agora, após o triste rumo que esse dia de celebração tomou, eu sabia o que estava por vir.

- Muito bem, então, Salomé. Minha adorável sobrinha e filha - a voz dele estava embargada - assim será feito.

Olhando em minha direção, fez o gesto de sim com a cabeça. Eu conhecia bem aquele gesto. Significava uma coisa. Uma coisa que eu me julgava incapaz de fazer.

Enquanto ainda ia me encaminhando para a parte inferior da prisão, onde João estava, um servo veio correndo em minha direção e me entregou uma bandeja. Eu sabia que havia pressa para que o juramento do Tetrarca fosse atendido à vista de todos. Quando cheguei onde João estava, deixei o prato no chão onde ele não pudesse vê-lo. Decidi que, mesmo que fizesse aquilo, não o deixaria saber do desejo perverso de Herodias em expor sua cabeça em um prato para que todos a vissem.

Assim que me viu, João parecia conhecer o seu destino. Olhou-me com um olhar fraternal. Quando eu ia começar a falar, ele se apressou e disse:

- Tudo bem. Sei o que foi enviado aqui para fazer. Meu tempo nesse mundo é chegado. Não precisa se preocupar comigo. Vou ficar bem. Sei exatamente para onde estou indo - enquanto falava, lágrimas começaram a jorrar dos meus olhos - Sei que você entendeu tudo o que eu lhe disse, e gostaria que você não se esquecesse de nada do que eu lhe contei. Lembre-se do homem de quem eu lhe falei.

- Ele... Pode - Já não conseguia articular as ideias de modo a expressá-las.

- Sim, Ele pode. Só Ele pode - Não podia acreditar naquilo. À beira da morte, lá estava aquele homem, sorrindo para mim, enquanto eu não conseguia segurar as lágrimas, que continuavam a rolar copiosamente - Tenha fé!

Não consigo me lembrar nitidamente de como fiz aquilo. Mas me recordo bem de entrar no salão do governador e ver todos olhando repentinamente para mim. Não necessariamente para mim, ou para minhas roupas sujas de sangue, mas para o que trazia em minhas mãos. Uma bandeja. Com a cabeça do homem mais formidável que tive o prazer de conhecer, e o infortúnio de ser o executor. Não teria conseguido fazer o que fiz se não fosse com a ajuda do próprio João. Nunca havia visto alguém morrer em paz, conformado com o tempo que lhe fora dado. Seu olhar para mim não foi de ódio, mas de perdão. Havia uma alegria notória em seu semblante. Como ele mesmo disse, ele sabia exatamente para onde estava indo. Um profeta de DEUS, sem dúvida.

Essa foi minha última execução. Estou deixando de ser soldado do império romano. Sei o que isso significa, mas estou partindo assim mesmo. Deixando para trás o pouco que tenho. Viverei de maneira incerta daqui por diante, mas com uma certeza. Se o homem mais extraordinário que conheci me falou de alguém que ele próprio não era digno de se curvar e desamarrar as correias de suas sandálias, é a esse homem que devo procurar agora. Esse nazareno, esse Messias, chamado JESUS. Será Ele o meu redentor, e nenhum outro.

Vagner Fernandes
Enviado por Vagner Fernandes em 26/01/2015
Código do texto: T5114522
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