HEMODIÁLISE
eu ia dizendo que escrever não é prazeroso
digam o que disserem, escrever não dá prazer
é um puta exercício desmesurado
exercício dramático de futilidade
tão mais inútil quando se trata de escrever poesia
haverá quem escreva por prazer
por lazer há quem escreva, não sei
quem escreve para ganhar dinheiro
não ganhará facilmente a vida
escritores devem ser antes jornalistas
ativistas de nobres causas
ou atentas donas de casa
pais de família serão escritores
mas só depois que formarem seus filhos
antes, escritores serão professores
enfermeiros, psicólogos, sapateiros,
pintores de parede,
antes, escritores serão padeiros
com uma das mãos na massa
e a outra cheia de letras,
antes, escritores serão escreventes
serão carpinteiros, cantores, padres
ou padres cantores
ou ghost-writers que são os escritores de aluguel
e mais e mais
e mais o que for preciso ser para sobreviver
nesse país onde não se ganha a vida escrevendo
por isso escritores são isso
são isso e aquilo
isso, aquilo e mais aquilo outro
assinam o ponto, guardam holerites
e pagam suas contas com sofreguidão.
*
ler é prazeroso
ler dá prazer
ler é tão necessário quanto fazer hemodiálise
para quem precisa
ler não é ouvir embora a voz do autor seja companhia
o mistério todo é aprender estar sozinho
a presença do autor está sempre disfarçada
porque o escritor não é o que escreve
nem sempre a voz do autor se parece com a do narrador
quem narra às vezes não conta
mas emenda um ponto no conto
às vezes quem conta são outras vozes também disfarçadas
ali a voz de um burro, ali a voz de um asno
lá a voz de uma princesa, lá a voz de um ogro
quem sabe o que se lê?
uma história bem contada flui como um rio
ponto à ponto, gota, frase,
períodos compostos de seca e chuva
mas para ser verossímil como a vida
uma história bem contada deve ter represas como um rio
o prazer de ler não é fácil e vicia
um baque de leitura pede sempre outra dose
dormir sem fechar o livro é tão bom como o avesso de um orgasmo
os amantes suam na procura de gozar mais alto
mais alto que da última vez
leituras profundas, abismos múltiplos, universos simultâneos
para dentro do corpo o lido converge em vivido
o nome disso pode ser antropofagia
quem precisa fazer hemodiálise
deve fazer sem falta
um bom livro não pode faltar na estante
antes de morrer todo homem precisa
toda mulher precisa também
ler ao menos uma história que não sucumbiu ao tempo
e permaneça viva em perpétua transfusão
*
quando escrevo, alguém conhecido parecido comigo escreve
acoplados um e outro, atados fazem hemodiálise
na maca presos a uma máquina medonha
que leva e lava e limpa do sangue palavras acumuladas
que passam engorduradas por estranhos filtros cada vez menores
necessários para toda vez erguer renovado
quando se nos detêm o ato insano de escrever.
essa máquina oprime, faz pressão mas libertar artérias
em volta a gravidade parece desfavorável
como se a tontura maior e mais bonita que o artifício
fizesse do exercício tortura salva-vidas.
no processo dolorido que opera a transfusão de mão dupla
de tudo que vejo, de tudo que ouço
de tudo que toco e tudo que penso
passa por mim quem vê passar na inequívoca direção do mundo
sem destinatário certo, o outro que se projeta mais dentro de mim
mais ao fundo, fundado
pedra de toque da pessoa múltipla que diz: escrevo.
a voz daquele que não tem carne mas tem fome é o verbo
voraz silente nas correntes sob a derme se estende.
entende?
absorve o que sinto quando não tenho escape
quando não estou em princípio,
quando a inspiração é transpiração transfusão é hemodiálise.
mas o fluxo nas veias está e vai como a economia do país
entupido de palavras estranhas à máquina
fluxo verborrágico na corredeira sanguínea estagnado
corroído por discursos gravita a mente
aborto contínuo do que virá, vômito necessário do excesso
sem escolha a contração é inscrever
do fosso da goela funda o grito seco, sopro de áspide encurralada
corte sobre corte de lâmina fria, sangria cicatriz na boca alheia
até doer profundo na ‘América latrina’
esse continente arquipélago dos homens isolados
onde flutua o atlântico sangue coalhado
hemoglobina desbotada dos moços mortos à bala
dos velhos empilhados nas filas dos hospitais
que ocupam o espaço de outros velhos desdentados
sem economias para sonhar a eternidade.
desdenha sedenta a mesma potência enfraquecida
que seja a sutura feita com apetite proporcional
do sexo abandonado aos pedaços depois do coito
do desprezo ao animal comido depois do jantar
do luxo engolido sem gelo, da ira sem propósito
do destino sem desejo dos sujeitos esquecido
nas promessas do maldito amém.
que assim seja, então, minha palavra descarnada
o perdão dorido, soco na boca do estômago
que nos faça sair com sobrevida da maca,
da estranha máquina da hemodiálise.
*
*
Baltazar