Lia traz, o quê?

Eliane Accioly Fonseca

Traz o detrás das coisas:

atrás do biombo

uma moça nua

atrás da moça

um prédio quadrado

atrás do prédio

um mercado de flor

atrás do mercado

homens: o apressado

o apaixonado o magro

o atlético o flácido

o engenheiro o filósofo

atrás do homem

o macaco:

mico leão sagüis

gorilas e chimpanzés

atrás do macaco

marsupiais:

coalas de Madagascar

a doce coala-cafu

os cangurús da Austrália

atrás do marsupial o réptil (e os pássaros)

do réptil e dos parênteses

um bicho de goiaba

uma ameba perigosa

uma água-viva de Bali

atrás da água-viva

um cabo das tormentas

e outro da boa esperança,

um mar mediterrâneo

e as águas primordiais

de um pacífico oceano,

atrás das águas, puro minério:

minas de carvão da Bretanha

vales do silício

ferro de Minas Gerais

ouro de Serra Pelada

diamantes, a estrela do sul

e cinco seixos rolados

Hoje sonhei com um castelo cheio de fantasma:

homens fantasmas surgindo de gomos de laranja,

e um homem apressado

Um sonho de gosto cítrico

Acordei cedo, pulei da cama

apressada como aquele homem

e ainda entre o sonho e a rua

fui levar na escola uma menina

ruiva pele de trigo

e olhar-algodão

Mãos dadas, ouvido atento

ouvia a menina contar

animada, dos namorados,

das omeletes que faz

com ovo de pedra sabão

e, entre brechas, daquilo que Lia traz:

atrás de mim, uma moça nua

e atrás da moça, um biombo

atrás do biombo

o feminino útero oco fértil escuro

e o masculino cartesiano guerreiro

solar cruel e amoroso

dentro do útero e além do sol

duas hélices azul-esbranquiçadas

No movimento das pás,

giram os germes do celeiro do mundo:

sementes animais e vegetais

e os mistérios dos minérios

Ocultas atrás das hélices

as fronteiras viróticas,

marcos silenciosos

entre o orgânico e o mineral,

mais misteriosos que os minérios

Mas, onde se guarda o castelo de fantasmas

com pomar de laranjeiras pendurado de laranjas

gomos de bergamotas cheiro sumo

limão pitanga araçá e jabuticaba?

onde perduram sonhos

e pesadelos multi-cores e sabores?

Na rua uma menina (pele de trigo

e olhar-algodão) a moça nua do biombo e uma mulher

caminham, as vozes reunidas:

“Escravos de Jó

jogavam cachangá

tira bota deixa ficar

guerreiros com guerreiros

fazem zigueziguezá

guerreiros com guerreiros

fazem zigueziguezá”

A menina ruiva a moça nua e a mulher cítrica,

do sonho, cada qual a seu modo, conta o tempo

sem pressa sem falar e até sem perceber

E o que é que Lia traz? o detrás o dentro a aura

o movimento o ritmo o rastro

a fala e o calar das coisas

Trás a história sem fim

Vamos contar mais uma vez?!