Paradoxo do cotidiano - Cúmplice.

Sempre procurou fazer o bem, sem olhar a quem. Bom profissional, marido e pai. Na vizinhança era querido por todos. Em toda oportunidade ele auxiliava idosos, deficientes físicos e crianças, indiscriminadamente. Não era preconceituoso, nem racista, nem xenófobo, muito menos homofóbico.

Naquele dia ao se dirigir para o mercado foi interpelado por um pedinte, que lhe suplicou uma esmola. Fazendo jus a sua generosidade, tirou do bolso do paletó uma cédula de R$ 5,00 (cinco reais) e entregou ao miserável sem nenhum constrangimento. Jamais fora mesquinho, e avareza ele considerava repugnante. A satisfação e o brilho nos olhos daquele pobre homem era a recompensa que ele julgava ser impagável ao fazer o bem!

Demorou uns 40 minutos comprando suas necessidades naquele recinto, e depois de pagar por todas elas tomou o caminho de volta pra casa, assoviando uma música religiosa. Próximo ao cruzamento um alvoroço de gente chamou a sua atenção. Apressou os passos e esquivando-se de alguns transeuntes que também observavam a cena ele estagnou: caído próximo à calçada estava agonizando um homem de meia idade, vítima de atropelamento. Imediatamente ele reconheceu ser o pedinte que lhe mendigara a esmola pouco tempo atrás.

Entre sirenes do SAMU e da polícia ele pôde ouvir vários comentários dos populares curiosos que ali olhavam os últimos momentos daquele moribundo, porém um fora crucial. Uma senhora dizia a plenos pulmões, em tom de indignação: “É nisso que dá essa maldita bebedeira. Eu não sei como essa gente que não trabalha consegue dinheiro pra beber o dia inteiro! Esse rapaz estava sóbrio hoje de manhã, mas têm uns 5 minutos que eu o vi saindo ali do bar, já transtornado pela bebida. Misericórdia, meu Deus! Será que essa gente que paga bebida pros outros não pensa que pode acontecer uma desgraça como essa não??!!”

Ao ouvir o lamento daquela senhora, o bom homem entrou num transe profundo, e era como se nenhum movimento ou som conseguisse fazê-lo despertar. Passaram-se alguns minutos até que ele recobrasse os sentidos e retomasse seu caminho.

Apesar de ninguém entender sua tristeza nos dias que se seguiram, ele trazia desde então uma sentença de sua própria consciência –a sua generosidade e bondade o tornaram cúmplice na morte daquele pedinte.

Há até quem diga que ele nunca mais foi o mesmo depois desse ocorrido.