Caliandra, a Impalpável Flor do Cerrado

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CAP. XXIII

Estive no culto da tarde, onde também se encontravam Marco Antônio e o pré-candidato. Na saída, conversamos um pouco e senti-me aprovada e confirmada na equipe.

Abri meu tablet e mostrei alguns aspectos da legislação eleitoral que precisavam ser observados, ao custo de se impugnar a candidatura a qualquer momento.

Eles tentaram tranquilizar-me, dizendo que estava tudo de acordo. Então, abri um perfil do Facebook que tinha sido colocado pelo filho do candidato e que contradizia alguns artigos. Foi um susto, o homem não sabia que estava exposto, ligou para o filho e mandou tirar a página imediatamente. Tomara que ninguém tenha feito print da página, eu teria feito se fosse do meu interesse. Repreendido, Marco Antônio disse que não mexe com essas coisas de Internet, carência que, a meu ver. desqualifica cem por cento um assessor, nos dias de hoje.

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CAP. XXII

Vinte e quatro horas de mistério, foi como sonhar acordada.

Amanhecemos doentes, Mainha e eu. Em vez de febre, hipotermia. Dois graus a menos na temperatura corporal, algo que nunca experimentamos. Mainha de cama, então... coisa que raramente se vê. Mas, aconteceu hoje.

Eu queria ir ao culto da tarde para receber uma oração, talvez uma profecia. E, outra coisa que raramente acontece, fui sozinha, sem minha mãe. Recebi oração com uma irmã que eu também não conhecia, a não ser de vista.

Coisa também rara, uma irmã orar por mim e sentir o peso da minha cruz. Ela orou de um jeito novo, fez suas as minhas palavras íntimas, jamais expressadas em público.

Por que, meu Deus, por que a porta não se abre? Como uma pessoa consegue ainda estar viva? Como pode suportar tanta dor, tanta injustiça, tanto sofrimento?

Ela garantiu, em nome de Jesus, que a porta se abriria no mesmo dia. Eu cri, até porque, crer é o que me resta.

O marido dessa irmã estava no culto, eu também não o conhecia, só de vista. Ele sentiu no coração que eu era uma pessoa com muitos mistérios e méritos e tratou-me de acordo. O Marco Antônio nos apresentou e a alegria foi geral. Eles tinham um projeto político que eu também desconhecia e decidiram envolver-me nas articulações. Convidaram-me para uma reunião da zonal do partido, que aconteceria no mesmo bairro, na mesma noite.

Tomei analgésicos e vesti-me para sair. Minha mãe continuava prostrada, com medo de analgésicos por causa da baixa pressão e da baixa temperatura. Não quis ir ao hospital, preferiu mudar a alimentação. Colocou mais carne vermelha, mais pimenta, mais berinjela, mais feijão, menos alho e cebola, menos arroz, menos laranja e menos pokan. Mas, nada modifica o quadro dela. Só se anima a fazer uma comida simples, lavar uma louça, entrar na Internet para ver se saiu o espelho do contracheque e observar no termômetro a própria temperatura corporal, sempre em torno de trinta e cinco graus.

Na reunião, eu deveria comportar-me como boa menina, bonitinha e eficiente, calada e discreta. No máximo, gravas as discussões e fazer anotações para uma possível ata. Mas, saiu tudo ao contrário, tive surpresa sobre surpresa. Havia sete pré-candidatos, um dos quais era o pastor, marido da missionária. O casal entrou junto e grande foi a admiração dela em ver-me em ação. Considerou divinas as minhas intervenções e não deixou que me podassem o direito de voz.

Eu tive minha própria surpresa com outro dos participantes. Ele permaneceu calado o tempo todo e interpelou-me na saída. Revelou-me parte do seu currículo. Ele é íntimo do setor Saúde e quis saber de onde vinha meu conhecimento sobre essa realidade em nossa cidade. Suspeitei que ele não tivesse ambição política além de espionar potenciais candidatos da oposição.

Já que ele perguntou, eu, simplesmente, desabafei. Contei tudo, não escondi nada. Mandei um abraço para o Secretário em exercício e expliquei que nunca pedi ajuda a ele em respeito à estrutura organizacional.

Eu não colocaria médico contra médico, chefe contra chefe. Preferi amargar a decepção e procurar quem me acolha e valorize. Nisto fui recompensada porque a oportunidade veio bater à minha porta, na pessoa do Marco Antônio. Agora, se a oposição acolheu-me, sou oposição também. Mas, proponho uma oposição respeitosa e criativa, cheia de propostas, sem baixarias e sem falsas acusações. Até porque, eles fazem aliança no final da disputa e eu é que ficaria de traíra e oportunista na história.

A surpresa maior veio ao final das vinte e quatro horas do mistério. Descobri, na Internet, que o partido fechou aliança com o partido assessorado por P.M., o mais recente ex-my love. Cheguei a pensar que essa coincidência desse sentido aos sonhos sonhados, onde nossos caminhos tornavam a se cruzar. Esse pensamento dominou minha vida por mais vinte e quatro horas, até que vi, no site do diretório, um desmentido. Trocaram as siglas e essa informação era equivocada. Outro partido se coligou, não foi o partido dele. Não ainda.

Hoje é segunda-feira e preciso voltar à rotina, apesar da febre e dor no corpo.

I

Cuido de mim, observo meu caminho e receio ser morta por um inseto, um susto, uma gota de chuva ou por falta dela.

Criei meu próprio codinome e agora podem chamar-me Kallyandra. Assim como eu, a Flor do Cerrado sobrevive na secura desértica do Planalto Central do Brasil, mas surpreende em ramadas e arbustos multicores em tempo de chuva e em jardins regados.

Acabo de completar vinte e sete anos de idade, sem muitos motivos para festejar. Não participo mais das comemorações públicas nem das festas familiares por causa do meu ritmo devagar-quase-parando. Também abandonei as opções de lazer, turismo e educação porque, além do esforço penoso, além da despesa envolvida em cada evento grátis, tenho que escutar o que não quero nem mereço.

Enquanto isso, minha feliz cidade ostenta o codinome de Capital da Esperança e completa hoje cinquenta e quatro anos de existência, o dobro da minha idade. Ao contrário de mim, Brasília é marcada por um crescimento e um desenvolvimento vertiginosos, como seria de se esperar para a capital de um país imenso como o Brasil.

Pelo menos para você, Brasília, desejo um Feliz Aniversário. Eu amo você. Eu acredito em você.

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II

Minha vida já foi mais agitada e tentei tudo que uma pessoa tenta em cada fase da existência. Rendi-me às limitações depois de compreender os incontáveis alertas da morte e antes que o Campo da Esperança me abrace.

Pensando nesses acontecimentos e possibilidades, lego às gerações futuras a Primeira Lei de Kallyandra: "Pessoas e cidades nascem, crescem, se desenvolvem e desaparecem de maneira desigual, em qualidade e durabilidade."

Não me preocupo com a hora de desaparecer de cena, de acordo com a Segunda Lei de Kallyandra: "Aproveite o seu tempo porque quem morre é problema dos vivos".

Já que estou com a mão na massa, registro aqui a Terceira Lei de Kallyandra: "A família é todo o Bem e todo o Mal na vida de qualquer pessoa". Caim e Abel que o digam.

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III

Um dos meus e-amigos mais influentes na cidade encaminhou para falar comigo um especialista recém-chegado de Tão Tão Distante. De fato, Brasília é um típico encruzamento de rotas e destinos, desde o início da sua construção. E eu, nascida aqui e habituada aos ambientes da burocracia, fui considerada boa fonte de informação para um potencial servidor público.

O doutor tem a minha idade e uma sólida formação acadêmica. Seria uma importante aquisição para a nossa Saúde Pública, e tem consciência do seu valor. Atravessando o inferno astral de uma vida sentimental e pessoal em plena ebulição, espera encontrar na cidade um pouco mais do que o mero espaço profissional. Pessoas nessas condições também são bastante comuns por aqui, mas nem todas com a especialidade que eu preciso.

Logo, promovi PHD a tele-amigo e contato do watts up. Só de falar comigo ao telefone, ele detectou sérias dificuldades respiratórias.

Depois de alguns dias, visitou-me em casa, abriu meu acervo de exames de saúde e fotos antigas, reparou meu modo de andar, mastigar e falar. Fechou uma hipótese diagnóstica, procurou colegas de outras especialidades e nessa breve teleconferência teve confirmação de diversas suspeitas. Assim que passar o abençoado feriadão de Semana Santa emendada com Tiradentes, vamos começar nova série de exames.

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IV

Em sonhos, vi uma chapa de ressonância magnética de cérebro, onde se destacava um ponto amarelo, do tamanho de um grão de arroz. PHD defende a tese de disfunção da glândula coclear. É inacreditável que jamais tenhamos encontrado alguém que propusesse sequer uma hipótese diagnóstica em bases científicas. Todas as hipóteses que investigamos até aqui foi pela Internet e por conta própria.

Mainha tentou retribuir a gentileza com uma longa explicação a respeito do sofrimento do justo, personificado no personagem bíblico Jó. Ela reforçou que o ponto forte de interesse de quem sofre é a virada que a vida de Jó teve depois de tudo que passou. Tentou fazê-lo acreditar no amanhã, pelo menos, reconhecer que o hoje está sendo generosamente melhor do que o ontem. Será que funcionou? Tenho dúvidas.

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V

A Páscoa comemora a saída de um povo do meio de outro povo, deixando a escravidão rumo a uma vida nova. Eu já estou de malas prontas. Sigam-me os bons!

Páscoa também é ressurreição. Ótimo momento para abrir uma nova porta de esperança que será para todos nós - para o doutor, que deseja uma vida nova, para mim que até aqui apenas sobrevivi e para minha mãe. Ela também merece um final feliz depois de uma vida inteira de loucuras de amor, enfrentando a Medicina, as atividades meios e afins, as ciências ocultas e espirituais - todas empenhadas em me rotular de hipocondríaca e outras coisas do mesmo quilate. Preciso mudar. Minha família diz, a Medicina atesta e a Sociedade concorda que minha doença é ser folgada.

A grande notícia de que estamos reiniciando a busca pelo diagnóstico não comoveu, nem um pouco. Por que ainda me admiro e choro? Por que ainda me doem as lembranças?

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VI

Esse irmão que ainda despreza a minha dor é o mesmo que não me defendeu o suficiente. Teve as vezes que a simples presença dele impunha respeito. Teve quando minha mãe tipo enlouquecia pra cima de mim e ele falava tão bonito: "Mãe, ela é menina, ela é mimosa, não fala assim com ela!

Mas, quando lhe contaram que a professora da Escola Classe 2 me espancava e quebrava régua na minha cabeça todos os dias no cantinho do pátio, ele apenas me mandou perdoar. Quando o outro irmão desencaminhou-se e colocou nosso lar em polvorosa, ele apenas isolava-se. Quando íamos juntos passear em Caldas Novas, ele apenas trancava-me e ia se divertir nas piscinas e nos jogos.

Bom foi no dia em que ele estava jogando sinuca, eu fugi do apartamento do hotel, peguei o taco e encaçapei todas. Beijinho no ombro, voltei para o meu castigo de onde eu só saía para comer.

Tenho noção de que essas maldades podem ter salvado a minha vida. Pois, eu era cardíaca sem que ninguém soubesse, já até desmaiei naquelas águas quentes, cansei de pegar infecção de garganta e de pele.

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VII

- Nada justifica a inércia. Nenhum laudo ou perícia terá o condão de trazer respeito e consideração para você. Todos temos problemas e nem todos se aproveitam disso. Cadeirantes e outros tipos muito prejudicados podem se tornar atletas e acadêmicos só com a força de vontade, e você não é nenhuma dessas coisas. A querida e premiada Ana Maria fez melhor: apresentava o seu programa matinal nos intervalos das seções de quimioterapia.

Só não mencionam que tanto o tratamento quanto o estúdio foram montados na casa dela, e o médico junto com a equipe não saíam do lado um instante. Se juntar à força de vontade alguns milhões de reais, eu também garanto que vou bem longe.

Sou modesta nas minhas exigências: eu só quero um pouco a mais de ar nos pulmões. É pedir muito? As espirometrias e polissonografias não me traduzem porque são feitas em repouso, sob condições normais de temperatura e pressão, CNTP. Pegar um ônibus lotado embaixo do sol é outra história. Isso eu chamo de condição adversa de temperatura e pressão.

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VIII

Mainha ainda ouviu atônita a acusação de ter falado, em algum momento, que se eu concluísse o Ensino Médio perderia a chance de herdar a aposentadoria dela. De fato, nós ouvimos essa orientação no CESAS, Centro de Ensino da Asa Sul. Para provar nossa intenção em contrário, tive inúmeros professores particulares que podem testemunhar que, quando alguém senta-se comigo e me ensina ponto por ponto, eu consigo passar nas matérias.

Será preciso explicar que este é o fundamento das Salas de Apoio nas escolas? Apesar de os colegas "normais" zombarem xingando de retardados, os alunos deficientes conseguem prosperar. Mas, sem diagnóstico, eu não tenho direito a Sala de Apoio. Meu QI elevado foi detectado na primeira infância e só me serve de argumento para os que me detonam, até na boa intenção de me despertar a força de vontade - como os gritos da minha mãe, as reguadas da professora, as advertências dos médicos.

É preciso explicar que a inteligência é apenas um dos fatores da aprendizagem e nem é o mais importante.

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IX

Na infância, eu tive esse direito, mas minha mãe não acredita no diagnóstico de Paralisia Cerebral e Lesado Cerebral. Na Sala de Apoio, colocavam-me a encaixar peças e brincar com coisinhas coloridas, enquanto os outros aprendiam números e letras. Eu me divertia sem noção de que estava perdendo terreno na vida escolar.

A partir da data de hoje, meu amigo PHD tem a oportunidade de provar uma de duas: ou que eu tenho uma deficiência ou que, pelo menos, uma de nós é vítima da Síndrome de Munchausen. Trata-se de um distúrbio de comportamento, onde um adulto impõe uma condição mórbida a uma criança ou dependente, para tirar vantagens ou proveito. Como a família pode ver e ser conivente com um crime desses? Por que ninguém formulou acusação junto aos órgãos competentes?

Agora, o pior que podem me acusar é de ser viciada em Internet e em comprar eletrônicos. Não perguntam, não tomam conhecimento, nem aceitam que a Internet é o mundo em minhas mãos, já que não posso passear meus pés pelo mundo. Bem que gostaria, ainda mais que a loja da minha cunhada garante o suprimento de lindos calçados em domicílio.

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X

Chegou o grande dia do casamento da Dani, ex-colega de trabalho da minha mãe que se aposentou há dois meses.

Nós estávamos inseguras por voltar a encontrar os antigos colegas de trabalho dela e pela festa acontecer à noite, em local distante e desconhecido. De véspera, deixamos articulada carona só de ida, com meu irmão, só que seria um contratempo para ele, porque estaria de serviço até as 23h, no Metrô.

Depois de rolar a noite inteira de um para outro lado na cama, minha mãe decidiu fazer diferente. Enviou e-mail para o colega Fábio, que por nada no mundo perderia essa festa. Ele respondeu pelo celular e a carona ficou combinada com o ponto de encontro em Águas Claras, no prédio do meu irmão. Chegamos lá por volta das 17h, com tempo de retocar o look.

Minha mãe estava lastimável, com os cabelos escorridos, um macacão de pantera e um blazer preto, esportivo. Minha cunhada arranjou para ela um vestido lindo, um colar, uma amostra grátis de perfume francês e um blazer branco, fez um coque, passou um batom. Prometemos levar docinhos da festa para todos.

O Fábio chegou depois das 19h, acompanhado da noiva dele, Luciana. Estacionou do outro lado da pista e ligou no nosso celular. Em cinco minutos estávamos olhando uns para os outros, sem chance de atravessarmos de tanto carro que passava na rua. Gentilmente, ele contornou o quarteirão e parou na nossa calçada. Logo, chegamos à igreja. Ficamos conversando no estacionamento porque estava acontecendo uma missa que ainda demorou uns vinte minutos antes de liberar para o casamento. Ficamos sabendo que o Fábio morava bem perto de nós, no Guará. Dessa forma, voltar para casa no início da madrugada deixou de ser problema.

A cerimônia foi linda e criativa. A trilha sonora incluiu Aquarela enquanto crianças com balões vermelhos em forma de coração passavam pelo tapete vermelho. A festa no buffet foi magnífica, teve até fogos de artifício quando os noivos desciam escadas convergentes em direção ao térreo do salão.

Os convidados de Brazlândia eram doze pessoas, carinhosamente apinhadas em uma única mesa, por pura amizade, porque o salão era imenso.

A certa altura, fui para a pista de dança, observar o movimento. Coloquei-me de conversa com a mãe de um pequerrucho que fizera parte do cortejo nupcial. O guri tirava todas as mulheres para dançar e eu não escapei. Parei para cumprimentar os noivos e justifiquei que Mainha ficaria na mesa porque estava enxergando pessimamente. Dani incentivou-me a curtir e dançar, então lembrei-me que tinha todo o direito de me divertir. Os comentários desagradáveis só me injetaram a vontade imensa de derrubar, pisar e sapatear em cima com meus saltos 15.

- Eu nem sabia que ela dançava. Eu nem sabia que ela usava salto. Eu nem pensava que elas iam conseguir chegar aqui. Eu nem imagino como é que elas vão voltar pra casa. Eu pensei que elas nem viessem porque estavam magoadas com a gente.

Logo, começou a tocar o grito de guerra que é Beijinho no Ombro. Na terceira frase, a Galega já tinha atravessado a pista e se postado, de um salto, dentro do meu espaço íntimo, a quinze centímetros dos meus punhos. "Bateu de frente, é só tiro, porrada e bomba". Que que é, tá pedindo?

Empolguei-me na coreografia, e ela em espelho, só que uns trinta centímetros abaixo, uns seis números menor e uns vinte quilos a menos do que eu. Se eu der lugar à ira e derrubar a periguete anciã sujo meu nome e minha fama. Por isso que ela provoca, porque sabe que eu tenho mais a perder do que ela. Pra quem está tão baixo, apanhar é lucro. Preciso arrasar na pista.

Não saberia dizer se a noiva entrou na cadência ou se percebeu o fight e decidiu intervir. Certo é que o vídeo da festa ficou ainda mais empolgante depois disso. Com um delicado movimento de braço, ela afastou minha antagonista e dançou comigo. Assim, o duelo foi mudado para dueto, protegido por um círculo em torno de nós, para alegria dos fotógrafos e cinegrafistas, isolando a briguenta.

"Rala, sua mandada!"

A música mudou para o Show das Poderosas, e aí a alegria foi total e geral.

"Afasta as fogosas e as que incomodam".

Tudo a ver. Tudo a ver.

Terminada essa música, decidi parar enquanto estava bom pra mim. Voltei para a mesa e começamos a encher de doces a sacolinha de poliéster. As colegas riram da gente, mas bem que gostaram da ideia. Os doces eram para os convidados, a maioria já tinha ido embora, então, tínhamos direito a porção dobrada. Senão, como iríamos cumprir a promessa feita a minha sobrinha pequena?

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XI

Tarde de domingo, PHD cedeu à solidão e convidou-me para um almoço no apartamento dele. Percebo que tudo é motivo para ele observar-me e contribuir no diagnóstico.

Na volta, aceitei o convite de outro e-amigo promovido a tele-amigo, para um caldo de peru na Casa da Codorna. Levei para ele um docinho do casamento, coisa fina, preciosa, delícia e beleza.

Rimos, achamos graça um no outro, nem vimos o tempo passar. Anoiteceu, a casa lotou e achamos lindo assistir um casalzinho trocando beijinhos, coisa típica de namoro novo. Os frequentadores começaram a aplaudir e tirar fotos.

Alguém gritou: "Aí, vizinha, demorou! Bem que você estava quietinha demais! Que partidão!" e as palmas aumentaram.

Na saída, o casal parou na calçada, o rapaz mostrou preocupação com a donzelística sensibilidade dela.

"Que nada, eles estão aplaudindo, estão gostando. Vamos corresponder, vamos posar para mais fotos, vamos dar autógrafos! Viva o casal hétero!"

Dezenas de latinhas e copos se ergueram no ar e o grito de "viva o casal hétero" prolongou-se ao ritmo dos aplausos, enquanto o casal entrava no carro e desaparecia na noite escura.

Foi um final de semana delicioso e diferente. Mas, estou tanto contente quanto moída, fisicamente e mentalmente. Preciso de uns dois dias a poder de analgésico e cama. Felizmente, os compromissos desta segunda-feira serão em casa. Não pretendo sair nem para a padaria.

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XII

O interfone tocou no momento em que eu estava no banho. Minha mãe recebeu nosso "consulente" em busca de noções de direito da pessoa portadora de deficiência. Tenho bastante informações sobre este e outros assuntos de interesse dessa categoria e as pessoas costumam nos procurar para direcionar suas ações.

Marco Antônio não tem um problema, ele tem um nó cego com inúmeras pontas soltas. Só ele daria material para um núcleo inteiro de novela. Ao longo dos anos temos aconselhado em vão, mas agora ele percebe a necessidade de ingressar na Justiça. Ao final da conversa, tirou do bolso o cartão de visitas de uma ONG com o contato de uma juíza. É fantástico, é tudo que ele precisa e nós também.

Imediatamente, ligamos para o celular dela. Atendeu, estava no Canadá e a diferença de fuso horário quase se tornou um inconveniente. Mas, ficou combinado que nos veremos na próxima semana. Ulalá!

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XIII

Reservamos a tarde de quarta-feira para as visitas de PHD, mas, pela segunda vez consecutiva e por motivos de força maior, ele não compareceu. Acaba de me comunicar que foi "intimado" a comparecer a um culto de ação de graças na clínica onde trabalha. Espero que receba a graça do dia e que seja para todo o sempre. Nós precisamos dele vivo e vitorioso. Amém.

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XIV

Mantemos uma casa de campo alugada, no bairro Brazlândia, área rural do Distrito Federal. Pretendemos devolvê-la e a imobiliária nos deu prazo de quinze dias ou teremos que renovar por um ano.

Desocupar a casa em quinze dias nos parece uma tarefa impossível. Teremos que jogar fora muitas coisas e esta é a parte fácil. Basta deixar do lado de fora do portão que as pessoas e os caminhões da Administração Regional vão pegando.

Difícil é separar o que queremos. Ontem, passamos o dia nessa tarefa e a noite foi bem ruim. Mesmo usando máscara cirúrgica e luvas, não posso mexer com coisas velhas acumuladas por causa do pó que ataca a rinite. A pele também se ressente, mas isso os cremes resolvem. Se eu utilizar o medicamento anti-alérgico, a sonolência vai me derrubar mais uns três dias.

Fazer o que? Amanhã será feriado do Trabalho, vamos comemorar e emendar o final de semana trabalhando nessa tarefa inglória e necessária. Para completar, vamos contactar o Djalmir, amigo faz-tudo, que esteve presente quando alugamos a casa e vai nos ajudar a prepará-la para devolver. Ele precisa de prazo para agendar as tarefas, porque é muito solicitado.

Faz exatamente um ano que não nos vemos. Espero que possa nos atender.

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XV

Mais um feriado, Dia do Trabalho, e nós ficamos em Brazlândia empacotando tralhas para entregar a casa à imobiliária. Na volta, recebemos ligação do Djalmir. O casal estava naquele bairro, e nós no ônibus, voltando para casa. Mainha desceu na Administração Regional para pegar carona com eles e eu prossegui rumo ao Guará.

Lá pelas oito da noite, ela chegou trazendo os costumeiros presentes da Ester - um blazer de linho rosa e um casaco jeans - mais um pacote de chuchu colhido na hora. Ficou combinado que ele vai ajudar a vistoriar e preparar a casa para evitar abuso da imobiliária. No apartamento também tem muita coisa para terminar e ele é o profissional de primeira escolha.

A dor de cabeça atormentou-me nos últimos dias e amanheci cheia de cólicas. Sexta-feira perdida, de novo analgésico e cama.

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XVI

P.M. deve ter passado momentos confusos nos últimos dias, pensando em como me fazer a pergunta que não quer calar.

Ele não deu sinal na hora, mas o docinho que lhe dei no domingo continha um detalhe intrigante: estava embrulhado em uma toalhinha redonda de organza, atado com fita do mesmo material, que aproveitei do bem-casado que a noiva distribuiu na saída da festa. Colado na organza, de cabeça para baixo, uma pequena imagem de Santo Expedito em silicone auto-adesivo.

Seria difícil de explicar se ele não perguntasse e preferisse o constrangimento da imaginação no julgamento de aparência.

- Você gostou tanto assim de mim que apelou para Santo Expedito? Eu sabia do Santo Antônio casamenteiro que as mulheres colocam de cabeça pra baixo. Santo Expedito é novidade.

Primeiro, quem mandou o docinho foi minha mãe, que tem esse dom de compartilhar. Segundo, nós não temos essa coisa de santinho mas minha mãe desmanchou as medalhas para aproveitar a ideia na logomarca dos calçados da minha cunhada.

Sem traumas nem mal-entendidos, rimos ainda mais e continuamos amigos.

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XVII

Hoje, sonhei que entrava em casa vinda da Faculdade, com livros pesados.

Aqui em casa, sonho é coisa para, pelo menos, se guardar. Na medida do possível, vamos buscando meios de os realizar. Este sonho de entrar para a faculdade é antigo e está bem em tempo de dar os passos necessários. Nos últimos anos, estive a serviço da minha mãe, acompanhando-a até no seu trabalho, por causa da diminuição da visão.

Agora, que ela se aposentou, voltamos para o apartamento e a cirurgia de vista é possível, chegou a minha vez de tratar do futuro. Ainda mais agora que vou começar as terapias respiratórias, minhas chances são infinitas. Não houve tempo perdido nem houve prejuízo para mim, muito ao contrário. Prejuízo seria aposentá-la precocemente, desde que o problema não a impedia de trabalhar, apenas dificultava o deslocamento até o local de trabalho.

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XVIII

Mais analgésico e cama.

Só porque estava em uma parada de ônibus na Av. Sandu, em Taguatinga-DF. Uma doida fez uma pergunta besta a uma periguete grávida. Ela recebeu uma resposta grosseira e respondeu com uma pedrada e um monte de desaforos. A pedra acertou um idoso deficiente, o idoso deficiente caiu por cima de mim. Consegui amparar o deficiente e ajudei-o a embarcar no ônibus dele. Mas, quase me desequilibrei e ainda estou com as costas doloridas pelo impacto. O que eu fui fazer em Taguatinga? Levar minha mãe ao oftalmologista para adiantar a consulta da catarata.

Mainha aproveitou que estávamos em perfeita harmonia, um raro momento de descanso, e de tanto assistir questões de paternidade no programa da Sônia Abrão, decidiu abrir sua particular caixa de Pandora e mostrar-me no Facebook o sujeito que me fez vir ao mundo. Para que, Deus meu? Eu nunca pedi isso! Não posso ter paz? Eu não joguei pedra na cruz para merecer tanta perturbação. Mas, ela achou importante fazer isso aqui e agora.

Chorei um pouco, reclamei bastante, dormi mal. Amanheci uma pessoa melhor. Só comentei com ela que certos assuntos exigem uma abordagem mais delicada.

***

XIX

Um sonho romântico perseguiu-me nas últimas semanas. Sonhava eu, sonhava minha tia, sonhávamos dormindo e sonhávamos acordadas. Minha mãe ia aprovando e concordando com tudo, pronta para qualquer resultado.

O moço era meu número exato, eu estava completada e feliz.

Em pleno dia, sentada na porta do Banco, esperando minha mãe ser atendida, cochilei e sonhei com ele. Fui acordada pelo celular, era minha tia contando um sonho parecido. Choquei, porque ela nem sabia desse relacionamento.

Dia seguinte, ela me ligou contando outro sonho com ele, que estávamos em família, numa festa, e ele fazia graça comigo, para desestressar.

Nesse sonho tinha um chão escavado que eu deveria contornar, e eu reclamava por isso.

Hoje, porém, o sonho foi mau agouro mais explícito. Eu tinha uma lata de doces nas mãos. Quando passava sobre um monturo bagunçado, bichos imundos atacavam-me querendo tomar-me os doces. No sonho, não conseguiram. Querem tirar minha alegria, querem amargurar-me a existência, desde antes de eu nascer. Não conseguiram, não conseguirão. Pois, mesmo em sonhos, salvei minha lata de doces e continuarei a salvar minha alegria de viver, não importa de onde me venha a aflição.

Voltando à real, o telefone tocou, era M.P., desmarcando o cinema e propondo uma amizade menos próxima. Vínhamos conversando demais, ultimamente, e isso estava afetando a rotina dele. Estava afetando a minha rotina também, e isso me parecia bom.

Agradeço a consideração, mas dispenso a amizade. Se estou incomodando, prefiro cortar o mal pela raiz. Só estou perplexa e decepcionada porque nossos sonhos não costumam mentir.

E a vida continua.

***

XX

Amanheci o domingo com um presente especial de minha mãe. O quarto que chamamos carinhosamente de "suíte master" foi decorado com as cores e objetos do Flamengo e colocado à minha inteira disposição. De hoje em diante, terei o que meus irmãos tiveram e eu nunca tive - um espaço todo meu, indevassável.

A família está mínima, só eu e ela, e isto me parece muito bom, no momento.

Estamos com somente um televisor, não por minha culpa. Ela deu todos e quebrou o último, sem querer. Está na oficina, ver se tem salvação. Enquanto isso, ou enquanto não chover dinheiro por aqui, ela vai assistir tevê no aparelhinho de GPS, já que o carro está passando temporada fora. Computador, temos os portáteis. Internet, cada qual tem sua 3G. Telefones, só os celulares individuais.

Nada justifica essa vida embolada que temos levado. Eu preciso dessa privacidade, até para voltar a estudar e preparar meu futuro.

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XXI

Sonho Sonhado

Um sonho romântico perseguiu-me nas últimas semanas. Sonhava eu, sonhava minha tia, sonhávamos dormindo e sonhávamos acordadas.

O moço era meu número exato, eu estava completada e feliz.

Em pleno dia, sentada no Banco, esperando minha mãe ser atendida, cochilei e sonhei com ele. Fui acordada pelo celular, era minha tia contando um sonho parecido. Choquei, porque ela nem sabia desse relacionamento.

Dia seguinte, ela me ligou contando outro sonho com ele, que estávamos em família, numa festa, e ele fazia graça comigo, para desestressar.

Hoje, porém, o sonho foi mau agouro. Eu tinha uma lata de doces nas mãos. Quando passava sobre um monturo bagunçado, bichos imundos atacavam-me querendo tomar-me os doces. No sonho, não conseguiram.

Mas, o telefone tocou, era M.P., desmarcando o cinema e propondo uma amizade menos próxima. Vínhamos conversando demais, ultimamente, e isso estava afetando a rotina dele. Estava afetando a minha rotina também, e isso me parecia bom.

Agradeço a consideração, mas dispenso a amizade. Se estou incomodando, prefiro cortar o mal pela raiz. Só estou perplexa e decepcionada porque nossos sonhos não costumam mentir.

Nem penso que esses me mentiram. Explico:

No primeiro, o ônibus dele passou pelo meu, eu gritava por ele mandando ele descer, ele nem me olhava, mas, no ponto final, ele me surpreendeu porque havia chegado antes e abraçou-me carinhosamente, com o sorriso aberto, como é do seu natural.

No sonho da minha tia, ele estava conosco, em família, participando de um evento religioso, fazendo graça para desestressar, como é do seu natural.

No meu segundo sonho, estávamos juntos em um supermercado, fazendo comprinhas, maior felicidade. Em outro, sonhei que estávamos tomando sol, em um clube, coisa mais linda.

Meu espírito vinha sendo preparado para um final feliz, não para um chute por telefone. Busquei resposta com Mamy Guru e suas irmãs de oração, mas não me senti respondida.

A vida continua e o tempo responderá.

Postado por Sheila Nagem Perru às 19:36 Nenhum comentário: Links para esta postagem

Sheila Perru
Enviado por Sheila Perru em 19/04/2014
Reeditado em 27/05/2014
Código do texto: T4775070
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