I - Aquarius

{Esse texto faz parte de uma novela, com essa sendo a primeira parte.}

Domingo

Lembro-me dos detalhes de quando ganhei esse caderninho preto. Foi em um aniversário, já nem sei quantos anos completava eu, talvez vinte e dois ou vinte e três. Também não sei com certeza quem me ofertou, recordo somente que foi um dos meus vários colegas do tempo da faculdade de Direito, os quais já não mantenho contato algum. Assim sendo, não posso me lembrar com exatidão quem me deu esse caderninho, ou sequer saber o ano, mas todo o resto ainda mora em mim.

Em algum fundo de bar de Belo Horizonte, cheinho de outros estudantes, da Faculdade de Direto à Faculdade de Medicina, todos ainda sóbrios. Lembro até do movimento do ar naquele dia em que eu completava ano; taciturno. Relembro até da fala que veio acompanhada do caderninho; para você, meu bom amigo, para que não tenha desculpa de iniciar aquele seu sonho lá! Veja bem, sonho lá! Foi bem assim que o jovem já sem rosto me disse. Falava ele da minha menção, que há um tempo havia feito, de querer escrever um romance. Achava eu que poderia escrever um clássico, quem sabe ser tão lembrado quanto Stendhal ou Flaubert. Ah, eu com meus vinte e poucos anos tinha como a maior de minhas preocupações essa, ser lembrado! O presente não me era importante (confesso que nem mesmo hoje o é), só pensava no depois. No epitáfio que estaria escrito na minha lápide. Nas flores que seriam postas em cima do meu túmulo por desconhecidos que me admiravam e idolatravam postumamente pelo que eu tinha sido um dia! Como eu sonhava essas coisas. Deleitava-me com essas memórias inventadas do futuro, crente de que um dia, ah, um dia! Eu seria tão importante quanto qualquer um daqueles nomes que ouvimos falar tanto. Não especificamente alguém da literatura, como alguns podem supor. Vejamos, não que meu amor por essa fosse máximo ou mínimo. Eu teria aceito ser importante em qualquer ramo, desde que eu fosse lembrado depois que me enterrassem.

Não poderia ser um Mozart, pois a música pouco me interessava. Juro que tentei até a pintura, mas proporção não era comigo! Restou a escrita. E bem lá para os meus quinze anos coloquei na cabeça que um dia escreveria um livro, bastava um, desde que fosse ele de importância magnânima. Empurrei a ideia com a barriga, afinal, qual grande obra poderia surgir na mocidade? Não, não, eu precisava esperar um tiquinho de anos a mais. Tinha de ter no mínimo uns trinta anos para conseguir escrever um grande clássico ou algo com o mínimo de valor. Só com essa idade teria uma carga de leitura imensa, ideias geniais, uma escrita arrebatadora! Conformei-me com essa condição e recebi o caderninho com um sorriso bem do sincero, anotando em minha mente que o usaria alguns anos depois, quando começasse a minha grande obra. Isso o ano era 1922 ou 1923. Juro que não sei, como já disse.

Pois bem, hoje é dia 16 de julho de 1950. Um 16 de julho tão 16 de julho quanto o do ano desconhecido em que ganhei o caderno. Faz o mesmo ar frio e abafado, até o céu parece estar exatamente igual, com as mesmas nuvens cobrindo as mesmas estrelas. Há algumas diferenças, as quais já vou lhes dizer (prefiro tratar esse diário não como um, mas como uma multidão inteirinha, por isso permitam-me usar o plural), mas no geral continua tudo com mais do mesmo.

Pois bem, pois bem. Trinta anos após aquele 16 de julho lá, tão parecido como esse (acho que era até mesmo um domingo como hoje), o caderninho permanecia intocável nos fundos de alguma coisa. Primeiro nos fundos do baú do meu quarto de estudante, depois passou para os fundos de uma caixa em minha casa de solteiro, e, pela maior parte do tempo, descansou em sono ininterrupto nos fundos da gaveta do meu escritório, até que enfim o resgatei da quietude. Hoje ele reencontrou o mundo, quando eu o abri e deixei que respirasse. Agora escrevo nele, não o romance como prometido, mas essas besteiras sobre o dia a dia.

Decidi assim faze-lo primeiro porque estou só e entediado. Teresa saiu com as crianças para a abertura de uma festa que, para minha infelicidade, se inicia bem no dia que completo ano. Cito a infelicidade pois é só isso que sinto nos nove dias que se sucedessem ao de hoje. Uma dezena de noite onde as ruas são recheadas de barulho e agitação. Nem minha casa, que fica até afastada do centro, escapa do infortúnio anual. Moleques passam aos montes, todos sem eira nem beira, e com toda sua falta de educação batem no portão aqui de frente. Conto já três vezes, senhores, desde que comecei esse escrito, que tive que me levantar e olhar pela janela se era alguém que chegava aqui em casa. Mas não, somente moleques baderneiros.

Dez dias se passarão assim.

A festa é de cunho religioso, fazem para comemorar uma certa padroeira da cidade. Eu, como já sou desgostoso com religião, não me dou ao trabalho nem de sair na calçada. Na infância eu era um desses moleques que batiam nos portões dos outros, ansioso para se divertir com as balas e brinquedos da festa, mas agora, que ganho tenho eu com tudo isso? Mesmo assim, convém lembrar que, no passado, era minha alegria ter essa dezena de dias junto ao meu aniversário de ano. Achava eu, menino ingênuo, que aquilo tudo era para mim. As barracas sendo armadas dois dias antes, os carroceis se montando, as cadeiras sendo postas em frente à matriz, a praça sendo decorada.... Ah, esses dias que antecediam! Meu coração ia se enchendo de expectativa para o evento que dava significado a toda aquela preparação, não a comemoração religiosa, mas meu aniversário! Foi assim por uns bons anos, felizes e sem preocupações. Mas se cresce e vê que nada daquilo é para você. Daí tudo perde o encanto tão fervoroso que um dia tivera. O verniz da magia escorre pelas barracas, os carroceis e todos os outros brinquedos, indo de encontro ao bueiro mais próximo. Resta, então, a realidade.

Hoje, com cinco décadas, o real me é isso; raiva desse barulho, que atrapalha meus pensamentos e interrompe a minha leitura. Talvez seja somente meu grau de amargura por tudo que tenha crescido. Seja como for, prefiro gastar a minha noite assim, sentado na escuridão de meu escritório no andar de cima, enquanto todos se divertem lá, meio longe. Costumo fumar uns três charutos em cada uma dessas dez noites, já que nada mais posso fazer com a barulho. Mas esse ano fiz eu diferente. Isso porque me deparei com esse ordinário caderninho.

Sabe, senhores, não sou o melhor dos homens, mas devido a ocupação que a vida me deu, costumo receber certos gracejos em demasia por meu aniversário. A maioria coisa porcaria (de gente porcaria), que trato de enfiar em algum canto da casa. Pois bem, esse ano em minha procura por um fundo dos fundos para enfiar as tranqueiras pelos 50 anos, achei esse caderninho! Daí lembrei de tudo, dos anos áureos do Direito, da vida na cidade grande, das noites nos bares de Beagá, do romance que quis escrever, do desejo de se tornar alguém importante. Ri da tragédia!

Esse encontro proporcionou a segunda razão pela qual agora escrevo aqui. Tinha eu o desejo de criar o romance perfeito, bem verdade. Porém, pasmem, havia também um desejo de escrever um diário. Não é esse o nome que dão aos relatos do dia a dia? A desculpa para não começar um foi que, não havendo nada de extraordinário acontecendo, não havia como eu sequer pensar em ter um diário. Afinal, o que diabos iria relatar? Do meu dia a dia medíocre como estudante de Direito? Ou depois, quando advogava em casos e mais casos "emocionantes" de divórcio? Só de pensar em escrever sobre isso eu sentia tédio!

Atrasava o começo dos relatos. Afinal, deveria deixar para começar a escrever sobre o meu dia a dia quando começasse minha jornada pela América Latina. Pois, ah, sim, havia esse sonho! Mas antes disso eu tinha de aprender espanhol. Mas adiei também isto, visto que precisava me dedicar nos malditos casos de divórcio. Se eu conseguisse pegar ao menos dez divórcios por mês, ah! Seria equivalente a pegar uma causa grande, daquelas! Por isso precisava me concentrar naqueles infortúnios, ganhar um certo dinheiro e só então começar a aprender espanhol. Daí desceria para a antiga Cisplatina, e depois de chegar ao México, retornaria com uma grande carga de leitura e vivências. E, claro, com um diário espetacular debaixo do braço, digno de qualquer grande aventureiro! Que homem foi esse Gregório! Só então poderia começar a escrever o romance, que viraria o clássico entre os clássicos. Morreria e seria importante postumamente.

Santo Deus! Colocando as coisas assim, passo até a pensar que a culpa de toda essa tragédia de agora, 16 de julho de 1950, foi não ter começado com o espanhol! Fica mais fácil assim, sim, sim. Culpa do espanhol.

Pulei a parte de aprender o idioma, e também a tal viagem. Mas quando vi esse caderninho... Por Deus, como me deu vontade de ordenar as coisas nessas folhas amareladas! Sabe, sempre pensei em começar meu grande diário de viagem falando sobre minha origem, o rapazola da cidadezinha no interior de Minas, filho de fulano com sicrana, e tal e tal. Mas hoje, bem neste dia que completo 50 anos (cinquenta anos!), não vejo necessidade alguma de contar-lhes nada disso. Simplesmente não há por que. Meu passado pouco vale ser contado. Adiei o espanhol e com isso adiei toda uma vida. Passei batido nessa Terra! Sim, falo como se já estivesse morto, pois, senhores, quando se chega a essa idade, os sonhos juvenis se evaporam, tornam-se só amarguras quando se dá conta que os anos se foram e você só deu a si mesmo uma coisa; nada. Esse mesmo nada para o qual agora conto esse meu relato. Sim, sim.

Acho que meu nada é tão grande (vejam o quão ambíguo e desesperador isso pode ser) que por isso mesmo prefiro pensar nessas folhas como uma multidão. Sinto-me acompanhado assim e, o melhor, não há, de fato, ninguém por aqui. Pois aí vai uma coisa sobre mim, desgosto da maioria das companhias. Mas estou gostando da do papel. Sinto-me até culpado por não ter tentado isso antes. Porém, o que poderia eu fazer? Nunca achei e continuo não achando a minha vida digna de ser narrada. Dá em mim até um certo desespero em tentar calcular o que colocarei no papel no dia de amanhã, e no depois de amanhã. Acho que irei esperar acontecer alguma coisa de grande por aqui para retornar a escrever. Mas, algo grande? Por aqui? Como irá demorar para isso ocorrer! Talvez jamais aconteça. Talvez, só talvez, seja melhor escrever sem precisar de um estimulo grandioso, bem como fiz agora, utilizando-me somente do tédio, coisa que me é tão comum e banal, para criar frases nessas folhas. Terei, então, que me contentar em relatar sobre os pormenores enfadonhos, que me dão ainda mais tédio! Ah, até que posso assim fazer, quem sabe consiga fazer graça com as impressões que mantenho escondidas sobre os outros. Não me parece mal.

Acabo de sujar o papel. Maldição! Levantei para ver quem estava entrando aqui. Adivinhem! Era somente moleques batendo no portão. Juro por Deus que não me dou mais o trabalho de levantar-me. Se Teresa quiser, que grite para que eu vá abrir. Sabe, eu tento ser o mais eficiente possível. Escuto o metal rangendo e já corro para ver se é a senhora digníssima dando o ar da graça, para eu correr rapidamente, quase pulando todo o lance de escadas em uma passada só, para não a fazer esperar muito tempo em ter a porta destrancada à sua digníssima passagem. Tudo ficaria mais fácil se tivéssemos empregadas à noite, mas dou folga as pobres coitadas que trabalham para nós, muito porque não quero pagar dois turnos. Ao invés disso, dou à Teresa minha total eficiência. Mas ela continua a reclamar. — Não paga um segundo turno às empregadas, e lá começa uma discussão! Demoro para destrancar a porta, uma nova gritaria. — Tudo seria mais fácil se você não fosse um mão de vaca! Ai, ai, agora meu ouvido transformou o barulho da festa na gritaria de Teresa. É como se ela estivesse bem aqui ao meu lado, fazendo o que faz de melhor, isso é, gritar.

O portão rangeu de novo, não me contive e fui lá ver. Mais um moleque. Já não vou jurar mais nada. Sei que no fim sempre vou optar por espiar se é a digníssima senhora com as crianças. Faço de tudo, tudinho, para não começar uma discussão à toa. Que mulher insuportavelmente difícil de se lidar!

Ah, tai uma coisa a qual possa discorrer à vontade nesse papel; Teresa! Não vou me preocupar com o nosso passado, como foi que vim parar nessa e coisa e tal. Não, não, vou narrar sobre o besteirol do dia de hoje. Sobre o feliz aniversário amargo e falso que ela me desejou logo pelo amanhecer. Que ódio em meu e em seu coração! O presente que a vida me deu, hoje, foi este; ter como primeiro vislumbre do amanhecer a cara amuada de Teresa. Depois consegui me esquivar dela e de sua falsidade pelo restante do dia, mas agora, à noitinha, ordenou que eu a acompanhasse à novena. Fingi resfriado. Olha só, que coisa, tosse fingida, uma gripe me pega bem no dia de hoje! Que pena! Tamanha lástima! Pagaria de tudo para ver a festa. Fez sua cara de enjoada de praxe, revirou os olhos negros e saiu resmungando que eu não tinha compromisso algum com a família, que ia ela mesma, sozinha com as crianças, para a novena e em seguida para a festa, que eu era um inútil e que diria a todos que perguntassem o motivo da minha ausência que eu era um imundo mentiroso. Este último é mentira. Teresa mui aprecia manter aparências. Ela é a boa mãe e eu, ah, senhores, eu sou o pai mais benfeitor desse finzinho de mundo!

[CONTINUA]