Cortando Cebolas ou A Hora do Jantar

(Capítulo V)

 

A Hora do Jantar

Liz estava possessa e o fitava com um ar de quem gostaria de engolí-lo do modo que estava. Era bem capaz de matá-lo ali mesmo, estraçalhado por um caco de vidro. Enfurecida e quase no auge de um distúrbio proferiu:

 

- Você não toca mais em mim, Alvarenga! Nunca mais vai tocar! Eu fui muito estúpida durante todos esses anos. Sofri, porque achava que não devia te enfrentar, mas agora eu cansei! Cansei de ser rebaixada...

 

- Solte isto e nós podemos conversar como pessoas civilizadas...

 

- Que conversar... Eu não quero mais conversa! Durante todos esses anos nunca tivemos conversa... E agora você me fala que podemos conversar como pessoas civilizadas? O que você entende de civilidade? Eu não sei por que eu perdi tanto tempo da minha vida com você, Alvarenga. Você é um canalha! Homem que bate em mulher, pra mim, é isso: canalha! Covarde... Mas você já está me pagando... Aos poucos você me paga! Você não tem escrúpulos nenhum. Pena que vi isso muito tarde. Você esteve de complô com a minha melhor amiga! Como puderam? Como puderam? Amiga de mulher tem que ser mesmo homem. Assim ela não corre risco de entrar no prejuízo... Você me traía com Gumercinda, Alvarenga!

 

- Tá louca! Isso não é verdade!

 

- E ainda nega? Ainda nega! Pois eu vi tudo. Ninguém me contou... Eu mesma vi. Estava escondida no guarda-roupas... Eu vi... Que nojo... Que nojo! Eu tenho asco de você! Você não vale nada! Eu queria me matar na hora... E matar vocês dois também!

 

Alvarenga partiu pra cima dela neste momento, mas ela esquivou-se e fugiu para o lado opsto da sala. Antes disso, fez um corte em no braço de Alvarenga. Ele, ferido, segurou o antebraço abismado:

 

- Você não está em sã consciência, está doente. Está doente, só pode...

 

- Estou doente sim. Louca. E se tentar alguma coisa, eu juro que não respondo por mim. Fiquei louca, Alvarenga. Ou devo dizer que estou mais sã? Acho que sim, estou mais sã do que nunca, na verdade! Loucura foi viver com você debaixo de porrada a vida toda... Loucura foi isso. Mas olha... Não adianta mais... Eu estou me livrando dos meus males. Eu deixei de ser idiota, Alvarenga... Vi tudo. E acabei com Gumercinda. Ela está morta! Ouviu? Está Morta! 

 

- O que? Você matou Gumercinda?

 

Ao que respondeu Liz com um ar de quem divaga, dando um risinho e numa naturalidade incrível:

 

- Matei... Matei sim... Gumercinda... Matei.

 

- Mas como foi isso? Quando?

 

Liz imagina a cena e a vivencia por inteiro ao mesmo tempo que fala:

 

- No mesmo dia em que vi você transando com ela... Você transou de uma forma absurda, Alvarenga... Como nunca fez comigo. Peixoto quis me mostrar que Gumercinda não era a mesma que eu conhecia e me escondeu em sua casa. Mas ele não esperava isso. Como eu com você, ele também desconfiava de outra pessoa na vida dela. Mas não estava certo. Ele quis me mostrar como ela o tratava e acabamos tendo uma surpresa. Depois que você foi embora, Gumercinda fumou um cigarro, e, num ar de devassa, adormeceu pelo cansaço. Então Peixoto abriu em silêncio o guarda-roupas e me pediu pra que eu fosse embora. Eu estava arrasada. Mas não quis ir embora. Fui à cozinha, beber um pouco de água e, da gaveta, peguei um furador de gelo. Meu ódio era tanto que eu não contive o desespero e o mostrei a Peixoto. À princípio ele foi contra, mas também estava desesperado e possesso de raiva. Então eu o convenci. Nós voltamos, ele a segurou e eu a perfurei todinha. Dezenove vezes. E ela morreu... Vazou como uma bexiga cheia d'água... Está lá, foi enterrada no quintal por nós dois.

 

- Deus do céu...

 

- Você, clamando por Deus? (gargalha) Ora, faça-me o favor... Escute aqui: Eu não vou pro inferno. Eu fiz um bem à humanidade... Um bem... Mulher assim não merece viver! Mulher assim pode ser amiga de alguém? De quem? Alvarenga, se for pesar, quilo por quilo, meu pecado já está pago. Agora o seu... - e deu-se um minuto - Você também não merece viver, seu imundo!

 

E dizendo isso, Liz foi se aproximando de Alvarenga. Altamente fora de si, ela exala:

 

- Você não presta, não vale nada! É um peso nas costas do mundo. Você não merece mulher nenhuma... Nenhuma! Só Gumercinda... Você sabe pra onde tem que ir? Você tem que ir para o lado dela!

 

Gritou e tentou atacá-lo nesse momento... Alvarenga fugiu, mas ela o alcançou. Ele a deteve por uns instantes e relutou: Segurou os braços dela e, como era mais forte, fê-la soltar o caco de vidro no chão. Depois, o chutou para longe. Ela, em seguida, chutou Alvarenga entre as partes e ele caiu sem forças. Liz então se atirou pelo chão e alcançou novamente o caco de vidro. Pegou e, no momento em que Alvarenga se reerguera, ela veio correndo como uma louca e o acertou no estômago. Liz fincou o caco de vidro e o arrastou pela barriga de Alvarenga. Ao cortá-lo, não disse nada, embora seu olhar tenha dito tudo. Depois do feito, ela soltou o caco de vidro no chão e ficou vendo ele tentar estancar o sangue. Sorria sem culpa e dizia "Estou Livre... Estou livre...", (gargalhava) "Morre demônio, morre!", "Morre!"... "Morre!" "Eu estou livre... Livre..."

 

Foi então que Peixoto chegou: Abriu a porta afobado, pois ouvira o barulho ao passar em frente da casa. Impressionado com o estado de tudo, ele olhou pra ela:

 

- Liz...

 

- Estou livre, Peixoto... Estou livre...

 

Peixoto então tratou de enrolá-la numa toalha e a sentou no sofá. Liz estava fora de si e a única coisa que dizia era "Estou Livre". Foi então que a polícia chegou: Eles entraram e, sem nada entenderem, olharam pra Liz, que vagarosamente olhou para os policiais e repetiu apenas "Eu estou Livre... Livre... Livre!".

 

(FIM)

 

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Oscar Calixto
Enviado por Oscar Calixto em 21/08/2007
Reeditado em 14/12/2023
Código do texto: T616991
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