O PASSADO ESQUECIDO

O PASSADO ESQUECIDO

Miguel Carqueija

 

Ronald Rohal colaborou na parte criativa.

 

INTRODUÇÃO

O SÓTÃO

 

Mariana cresceu na mansão de sua família e era uma menina normal, embora dotada de curiosidade acima da média. A família era grande e isso a deixava às vezes meio perplexa na tentativa de abranger todo mundo, mas com o tempo e a pequena maturidade dos nove anos já estava mais acostumada, inclusive com os animais da casa, por quem nutria uma forte empatia.

Certa manhã coisas estranhas começaram a acontecer na sua vida.

“Com certeza o sótão foi o começo de tudo. Se não existisse um sótão em nossa casa, um sótão proibido para as crianças e até para as empregadas, com certeza a minha vida teria sido outra. Mas era ali que estava o mistério, que espicaçava a minha curiosidade. O que poderia haver lá em cima? Por que a porta estava sempre trancada e até aferrolhada?”

— Mamãe, por que afinal a gente não pode ir ao sótão?

Miriam estava na cadeira de balanço lendo “Pollyanna” e estacou o balanço como se levasse um choque. Olhou para a filha, com uma cara de quem tivesse engolido um abacate inteiro com caroço e tudo.

Empalidecera.

Mariana percebeu isso e, admirada também pela ausência de resposta, observou:

— Que foi, mamãe? Você está pálida!

— Não foi nada. Acho que a minha pressão está baixa...

— Mas por que não podemos ir no sótão?

— Lá não é lugar para brincar.

— Mas, mãezinha, dizem que os sótãos estão cheios de coisas interessantes...

— Esse aqui não tem nada de interessante, está é cheio de sujeira...

— Mas...

— Deixa eu ler. Daqui a pouco tenho que fazer o almoço.

Mariana não gostava de ser chata e não quis insistir. A curiosidade, porém, espicaçara-a de vez. Naquele momento ela prometeu a si mesma, em pensamento, que iria descobrir tudo.

Naquela noite ela fez nova tentativa, desta vez com Clara, a irmã de doze anos, que partilhava o quarto com Mariana.

— Clara, o que você sabe sobre o sótão?

— Eu? Já falei a você que não sei nada. Isso é um tabu da família.

— Mas não é possível! Você é mais velha do que eu!

— E daí? Para papai e mamãe nós não temos idade para saber nada!

— E quem é que tem a chave de lá?

Clara remexeu-se por debaixo da coberta, incomodada.

— Mariana, você não está pensando em entrar lá às escondidas, não é? Vão te matar se você fizer isso!

— Se você for comigo eu terei mais coragem.

— Isso é tentador mas eu não sei da chave. Certamente está com nossos pais.

— Será que o vovô tem?

— Até pode, mas vovô...

— Que é que tem?

— Ele não deve ter muito interesse nisso. Já está bem velho!

Mariana parou de falar para refletir.

— Vovôs são como crianças, você sabe. Para os papais e mamães eles também não sabem nada.

— E o que é que você quer dizer com isso?

— Talvez ele queira nos ajudar.

— Ele também não fala nada sobre o sótão! Senão já teria falado.

Mariana lembrou-se que o sótão tinha, é claro, uma janela para o telhado. Estava sempre fechada e, pela altura, não dava para espiar pelo vidro.

A solução seria subir no telhado.

Dotada de uma inteligência invulgar, Mariana achou melhor não insistir por enquanto com a irmã e tratou de bolar um plano. Recapitulou a situação externa da casa e lhe pareceu que não seria difícil alcançar o telhado; o problema seria se a avistassem. Nos dias modernos as pessoas adquiriram hábitos muito notívagos.

Precisaria de uma noite sem lua e, se possível, uma noite de apagão, embora raramente isso acontecesse.

Mas uma menina de apenas nove anos podia tomar tais iniciativas? Então Mariana lembrou-se das aventuras da “menina da sexta lua”, que tinha essa idade e era poderosíssima.

Depois que Clara adormeceu, o que se percebia por um leve ressonar, Mariana foi até a janela e, da pequena varanda, examinou a situação. Calculou que com jeito e um pouco de coragem dava para escalar pela calha e chegar até o telhado. Nunca havia subido lá, mas o pai subira várias vezes; todavia, usando a escada de mão imensa.

Não passou despercebido a Mariana o risco que correria. Se caísse da calha, morreria.

Valeria a pena?

Mas ela confiava muito em seu anjo da guarda.

 

CAPÍTULO 1

O SEGREDO ENTREVISTO

 

Se não houvesse lido histórias do Tarzan, tão diferentes dos filmes, Mariana acharia muito dificil esperar e talvez se precipitasse imprudentemente. Mas buscou acalmar-se e aguardar pacientemente... até aquele domingo de lua nova e céu nublado e sem estrelas.

Clara ressonava quando Mariana, insone, foi até a varanda, implorou ajuda ao anjo da guarda e descalça, de pijama, começou a subir pela calha, que era bastante firme. Subiu rapidamente, como uma macaquinha, e logo alcançou o beiral. Os suportes da calha auxiliaram muito suas mãos e pés.

Agora finalmente encontrava-se a poucos metros da misteriosa claraboia, e mal acreditava na sua própria audácia.

Tomando bastante cuidado naquelas telhas inclinadas ela se aproximou da claraboia e olhou pelo vidro. Lá dentro estava muito escuro e, a contragosto, ela puxou do bolso do pijama a sua lanterna e acionou o feixe.

E o que ela viu...

 

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O que ela viu, de início, recusou-se a acreditar. Era algo que causaria escândalo se pessoas estranhas tomassem conhecimento.

Era uma espécie de múmia, sentada no meio do empoeirado sótão. Havia sim, quinquilharias, pilhas de livros velhos e esquecidos; muia coisa que não se podia distinguir devido à fraca iluminação. Mas aquela figura terrificante... será que nunca havia sido avistada? Afinal na vizinhança as pessoas, por algum motivo razoável, andavam pelo telhado, como em qualquer lugar habitado no mundo.

Mariana sentia-se tremer. Na verdade, de longe, mesmo em noite de lua cheia ou em dia ensolarado, e por causa também do ângulo, não era possível que alguém visse aquilo. Mas se passasse algum helicóptero ali perto... e havia os helicópteros da polícia...

A menina percebeu por fim que a vidraça tinha papel colado pelo lado de dentro. Parte porém estragara e despencara, roída por traças ou por ratos.

Sua família havia feito, portanto, serviço completo (ou assim pensavam) vedando também a claraboia.

O que Mariana deveria fazer? Sentiu que estava apavorada, como se temesse presenciar a qualquer momento uma ressurreição daquela figura terrível, que se ergueria e viria direta na janela, para pegá-la...

Ela queria retornar, fugir daquela presença minaz, ameaçadora, mas como poderia esquecer aquela coisa? Olvidar que dormia por assim dizer embaixo daquilo?

Lera certa vez que a monstruosidade tem forma humana. E aquela ali...

Seu coração batia forte. A auto-confiança de Mariana achava-se abalada. Refletiu que precisava se acalmar para poder retornar em segurança, senão poderia desabar lá de cima e morrer de verdade.

Voltou então a olhar a COISA, tentando se convencer de que não estava tendo alucinações.

A cara, retorcida num esgar diabólico, ostentava um nariz adunco e cheio de verrugas, embora a distância e pouca iluminação dificultassem qualquer certeza nos detalhes. A camisa de mangas compridas, as calças marrons, os sapatos vermelhos e anacrônicos, uma espécie de gravata... tudo aquilo tresandava uma antiguidade inimaginável. Os cabelos, desalinhados e com uma cor insolitamente esverdeada, pareciam irreais, coisa de espantalho. A boca estava entreaberta, paralisada num movimento, os dentes estavam enegrecidos e os caninos eram pontiagudos. E os olhos, arregalados, pareciam querer saltar das órbitas...

O que era aquilo? Um vampiro? Um demônio?

Arfando, coberta de suor, Mariana compreendeu que tinha de voltar. Não devia continuar lá em cima. Crescia a convicção íntima de que a COISA estava viva, apenas sob forte encantamento. E não queria ser ela a quebrar aquele encanto.

Recuou, afastando-se da visão abominável.

Recuou de costas, temendo dar as costas à claraboia, até que seus pés tocaram a calha. Ofegante, controlando os nervos, ela firmou-se bem e desceu. Quando finalmente sentiu o chão da varanda sob as plantas dos pés, respirou de alívio.

Sua irmã ainda dormia. Mariana deitou-se, cobriu-se com o fino lençol e, tentando adormecer, murmurou em sua perplexidade: “Meu Jesus, mostrai-me o que eu devo fazer!”

Maduras reflexões levaram Mariana a uma conclusão que parecia a mais lógica: era preciso contar a Clara. Para Mariana era claro e evidente que não seria prudente falar com os mais velhos. Se eles guardavam no sótão uma coisa abominável, não iriam gostar que a coisa fosse descoberta. E para a menina, dormir debaixo daquela coisa execrável iria, dali para a frente, tirar-lhe o sono, acabar com sua tranquilidade e provocar-lhe pesadelos.

Por que? Por que os seus pais guardavam aquilo lá em cima? E o que era aquilo? Um demônio em aimação suspensa? Aquilo ainda vivia? Poderia se reanimar? Até onde ia o perigo? Sim, porque o instinto de sobrevivência de Mariana dizia-lhe com todas as letras que aquilo representava um perigo mortal... para todos.

 

 

 

CAPÍTULO 2

JURAMENTO

 

Não era tão fácil assim contar tudo a Clara. Primeiro, era preciso que ninguém mais escutasse. Segundo, era preciso levar Clara a jurar por tudo o que era mais sagrado, que não falaria daquilo a ninguém sem o seu consentimento. Terceiro, era necessário que estivessem sozinhas na casa ou em outro local qualqer.

Mariana refletiu se não estava sendo paranoica. Tentando pensar como seus pais, pareceu-lhe que, em seu lugar, ela colocaria microfones ocultos no quarto das filhas, para monitorar as suas conversas.

“Haverá microfone em nosso quarto?”

E se houvesse, e se o segredo fosse tão mortal assim, o que fariam se descobrissem que elas sabiam? Eles as matariam?

“Que loucura. Papai e mamãe nos amam.”

Mas como podiam guardar um segredo tão asqueroso?

Era terrível começar a não confiar na própria família, até ali uma família unida, ainda que Mariana sentisse um certo distanciamento dos adultos, e isso de longa data: não eram transparentes.

Assim, na noite seguinte, recolhidas em seu quarto, Mariana pôs-se a examinar as paredes e atrás dos móveis.

— O que é que você está aprontando? — perguntou Clara, admirada.

Mariana aproximou-se da irmã.

— Eu te conto, onee-chan, mas quero que me jure uma coisa.

(Onee-chan, ou irmã mais velha em japonês, era uma expressão que Mariana aprendera na cultura japonesa de mangás e animês.)

— Como assim? Mamãe diz que a gente não deve jurar!

— É que se jurar não pode quebrar o juramento, ora! Portanto, jure e cumpra!

— Mas o que é que você quer que eu jure?

— Que não vai contar a ninguém o que eu vou contar hoje a você.

— Você descobriu o segredo do sótão?

— Fala baixo!

— Vou falar baixo mas você sabe que todo mundo aqui, menos nós, fica vendo tevê até tarde. E adoram filme de terror.

Mariana estremeceu a essa menção. Por alguma razão sentiu-se tomada de medo, mas procurou se controlar. Retornou à cama, sentou-se junto à irmã e sussurrou:

— Agora jura!

— Mas o que é que você quer que eu jure? — Clara já sussurrava também, entrando no clima da irmã caçula.

— Repete comigo, apenas.

— Sim. Estou ouvindo.

— Eu juro por tudo o que é mais sagrado...

— Eu juro por tudo o que é mais sagrado...

— Juro diante de Deus...

— Juro diante de Deus...

— Que não revelarei a ninguém o segredo de minha irmã Mariana...

— Que não revelarei a ninguém o segredo de minha irmã Mariana...

— Não revelarei nem mesmo ao resto da família...

— Não revelarei nem mesmo ao resto da família...

— Enquanto Mariana não me consentir...

— Enquanto Mariana não me consentir...

— E que o Céu me castigue se eu trair esse juramente. Amém!

— E que o Céu me castigue se eu trair esse juramento. Amém!

Mariana suspirou, aliviada.

— Agora eu jurei como você disse, Mariana. Portanto me conta.

— Clarinha, tem um monstro no sótão.

— O que? Você está brincando!

— Não estou não! Ontem, enquanto você dormia, eu subi pela calha e olhei pela claraboia do sótão!

— Mas lá não tem espaço para monstros, mana! Um dragão, por exemplo...

— Sua tola! É um monstro humano! Do tamanho de você!

— Ué, deve ser um manequim feio!

— Não é. Eu olhei bem, é de verdade!

— Mas se mexe?

— Não. Está completamente imóvel.

— Está bem. Me conta todos os detalhes.

E Mariana contou. Detalhou tudo aquilo que podia lembrar. O traje, a posição, a expressão.

Carla a princípio se mostrou cética.

— Maninha, isso não deve ser nada demais. Se a coisa não se mexe deve ser um manequim.

— Mas tão feio?

— Por que não? Tem tanta coisa feia por aí.

— Você diz isso porque não o viu.

— Você vai querer que eu me arrisque subindo na calha? Não vou fazer isso! E você por favor não faz mais! Não quero ficar órfã da minha irmã!

— Está muito bem, Clara. Então me fala por favor: o que nós vamos fazer? Vou tornar a explicar: nós duas estamos dormindo debaixo da monstruosidade.

— Diretamente em baixo? Ele está sobre o nosso teto?

— Do quarto? Acho que não, mesmo assim...

— Bem, eu não sei o que é que nós vamos fazer. Me dá um tempo? Vou precisar pensar alguns dias.

— Não demora muito.

— Até domingo eu te falo.

— Clara, e se nós não sobrevivermos até domingo? E se aquela COISA nos pegar?

— Ah, para com isso.

— E se ela me viu?

— Quer que eu te bata?

— Ah! Você nunca fez isso!

— Tá bom. Não fica paranoica. Tenho certeza que ele não vai atacar até domingo.

 

CAPÍTULO 3

PROVA DOCUMENTAL

 

 

Mesmo parecendo um tanto despreocupada com o assunto, a verdade é que Clara também estava preocupada. Ela ouvia o suave ressonar da irmã caçula e cismava como Mariana estava certa. Não havia nenhuma razão aceitável ou lógica para que os adultos negassem a elas conhecimento do que é que existia naquele sótão. Teria que ser algo tão terrível e monstruoso que fosse vedado às filhas o conhecimento. Mas o que poderia ser?

Seria prudente falar diretamente com os pais, cobrar-lhes uma explicação? Mas Clara havia jurado e duvidava que sua irmã consentisse em semelhante idéia.

Pelo que sabia das histórias de fantasia, a criatura do sótão poderia estar paralisada por forte encantamento, como Inuyasha na árvore sagrada, cravado pela flecha de Kikyou.

Mexer com ele poderia quebrar o encanto? O que poderia acontecer então? Seria essa a explicação do silêncio dos mais velhos?

“Ah, maninha! Por que não levou o celular e fotografou a coisa?”

Esse pensamento fez baixar uma ideia em Clara.

“Uma de nós tem que subir lá e filmar.”

E teria que ser ela. Clara tivera a idéia, não deixaria Mariana se arriscar.

“Coloco um paletó de pijama com bolso grande, aquele listrado, levo ali o celular. Posso subir com mais firmeza que a Mariana.”

Assim ela resolveu fazer a mesma coisa que Mariana: subir no telhado com a irmã dormindo. A maninha não esperava que ela também ousasse mas, afinal, era mais velha.

Tendo assim resolvido, não viu razão para não ser naquela noite, ainda que tivesse prazo até domingo (era uma sexta) para decidir.

Ruim foi encarar o frio da noite descalça, mas escalar calçada seria mais difícil e perigoso. Clara subiu sem dificuldade, agarrando-se com segurança na calha. Uma vez no telhado sentiu-se mais segura. Pela primeira vez ela se encontrava naquela parte da casa! Com o coração batendo de emoção, acercou-se da janela do sótão e olhou.

Como já havia sido alertada pela irmã caçula, não teve grande susto. Mas com certeza a criatura estava lá.

Com sua lanterninha, Clara não podia obter uma visão realmente nítida, e embora sentisse um frio na espinha, pois a figura era mesmo assustadora, tentou refletir de forma racional. Dificilmente aquilo seria um manequim. Mas poderia ser um corpo embalsamado, uma múmia mesmo, Clara não pôde acreditar que a coisa estivesse viva.

Em todo caso fotografou várias vezes e desceu em seguida, demorando muito menos que Mariana.

Imaginava que a caçulinha estivesse já acordada, mas ela dormia como um anjinho. Clara tocou nela e, como Mariana não despertasse, sacudiu-a ligeiramente. Mariana despertou, admirada.

— O que foi?

Clara mostrou-lhe o celular e Mariana entendeu de relance.

— Você não podia ter feito isso...

— E por que não? Isso não estava no juramento!

— Tirou muitas fotos?

— Umas cinco.

— Já olhou?

— Não, eu me segurei, para olharmos as duas juntas.

— E o que você achou... da coisa?

— Não acredito que esteja viva. Pode ser uma múmia, afinal de contas.

— Tomara que seja... mas vamos ver! Mostra!

Clara buscou o aplicativo das fotos do aparelho.

O corpo estava lá. E coincidia com a descrição que Mariana fizera.

— Eu estava imaginando que essa coisa não iria aparecer nas fotos...

— Por que não, Mariana?

— Porque isso deve ser um vampiro, e vampiros não têm reflexo, não aparecem nos espelhos... também não devem aparecer em fotos...

— Isso são lendas. Se os vampiros vivem misturados com as pessoas normais, não terem reflexo ou não aparecerem nas fotos chamaria a atenção.

— Talvez você tenha razão. Bem, agora nossos pais não podem negar que estão guardando isso no sótão.

— Vamos com calma. Você tem coragem de falar com eles?

— Você deve falar, Clara. Você é mais velha.

— Vão saber que nós arriscamos nossos pescoços subindo pela calha. Tenho uma idéia melhor, vamos entrar lá.

— Entrar como?

— Precisamos descobrir a chave, é claro, e entrar numa hora em que não haja ninguém por perto.

— Mas e se a coisa despertar?

— Não vai despertar se não tocarmos nela, é claro. E talvez seja apenas uma múmia.

— Por que iriam guardar uma múmia?

— Bem... pode valer uma fortuna...

— Eu não daria um centavo por uma coisa tão feia.

— Você não, mas outras pessoas sim, museus, sei lá...

— Então vamos encontrar essa chave.

— Não seja precipitada. Deixa eu planejar isso, sou mais velha que você!

— Mais velha? São só três anos!

— Ah, mas esses três anos é que fazem a diferença!

— Então o que você sugere?

— Vamos falar com o vovô e pedir a opinião dele. Talvez ele nos diga onde está a chave, mas tem que ser uma hora em que a geração entre a dele e a nossa não esteja.

Mariana achou graça com a maneira de Clara se referir a “papai e mamãe”.

— Você faz isso então? Eu não tenho coragem.

— Eu faço mas você tem que vir comigo para me dar força.

— Está bem, Clara, vamos nós duas mas você fala.

 

CAPÍTULO 4

VOVÔ É CONVOCADO

 

Afinal foi preciso esperar a segunda-feira, quando os pais saíam para trabalhar e o vovô havia ficado em casa, ele muitas vezes levava as netas para passear ou ir ao cinema, mas naquele dia nada haviam programado. Afinal havia dias em que ele preferia descansar e ler.

O fato é que depois que elas voltaram da escola resolveram falar com ele. Só não diriam que haviam escalado pela calha para não horrorizá-lo. Os adultos costumam ser difíceis de lidar e implicam por qualquer coisinha.

— Precisamos perguntar uma coisa para o senhor! — falaram elas ao mesmo tempo.

O velho, que estava se distraindo com um livro enorme de grosso (Clara deu uma olhada na capa e leu mentalmente “Anna Karenina”; como podia a história dessa mulher ocupar tantas páginas?), interrompeu a leitura com boa vontade, geralmente ele tinha muita paciência com as meninas:

— Podem falar, o que pode ser tão urgente? – disse ele, fechando o livro com um cartão de marcação:

— Não é que seja tão urgente... — balbuciou Clara, pisando no pé de Mariana para que esta se calasse — mas é importante.

— Pois bem — e o Vovô Clarêncio (de cujo o nome viera o da Clara) perguntou, sorrindo: — e o que pode ser tão importante e não tão urgente?

— O senhor não pode nos dizer o que é que tem de tão secreto no sótão?

— Ah, é isso? Já me perguntaram isso antes...

— Não em dupla, vovô. Nós não compreendemos porque não podemos entrar lá.

— Eu mesmo há anos não entro, é escuro, úmido e só tem velharias...

— Mas por que nós duas não podemos entrar?

— Bem, eu por exemplo não gostaria que vissem umas fotos minhas antigas... e que estão lá em velhos álbuns.

— Não pode ser só isso — disse Mariana, e Clara tornou a pisá-la.

— Para quem teve seus amores de juventude, há razão para não querer que vejam.

— Mas — disse Clara — o senhor vai junto com a gente.

— Não tenho mais a chave, não me interessa ir lá. Mas vou ver o que posso fazer por vocês, vou falar com seus pais.

— Não precisa isso. Arranja uma chave para a gente, só isso.

— Hoje está muito tarde e eu quero ver o que é que vai acontecer com a Anna.

— Anna? Que Anna?

— A do livro. Mas esse livro é para adultos, é outra coisa que vocês não podem ver.

Elas entenderam que ele estava brincando e o vovô prometeu dar uma resposta no dia seguinte.

E realmente, uma surpresa aguardava as garotas. O vovô apresentou-lhes uma chave de chumbo, grande e de aspecto velho, e uma chave de cadeado.

— Não posso acreditar, vovô. Você conseguiu mesmo? — observou Clara.

— Não é tão difícil assim, afinal eu sei onde eles guardam velharias, e há mais de uma cópia. Não vão dar por falta tão cedo.

— Mas são as chaves certas? — indagou Mariana.

— Eu testei as duas. Não sou nenhum bobo.

— Não quisemos dizer isso...

— Então nós podemos ir lá agora?

— Podem, contanto que eu não vá junto. Não quero me meter nisso — disse o velho cinicamente, como se, ao arranjar as chaves, ele já não estivesse se metendo. — Só não mexam com coisas enferrujadas, porque poderiam se ferir.

— Pode deixar, vovô — respondeu Clara. — Sabemos nos cuidar bem.

— Mas não demorem por lá. E não desarrumem, para que seus pais não saibam que estiveram lá.

As duas crianças arregalaram os olhos. Decididamente, vovôs são diferentes de mamães e papais!

 

 

CAPÍTULO 5

O CLÍMAX

 

Clara e Mariana puseram as roupas caseiras, como bermudas velhas, não iriam lá com os uniformes escolares: como iriam explicar se os sujassem? Mas não esperaram mais nada. Qualquer lanche ficava para depois. E quanto mais cedo resolvessem melhor, pois papai e mamãe chegariam mais tarde...

Clara segurava o chaveiro com as duas chaves, a pequena do cadeado e a grande da maçaneta. Sentia-se trêmula, com a impressão de que estava agindo como uma criminosa. Mas crianças têm muita tendência a desrespeitar regras, nem ela nem Mariana estavam dispostas a recuar, não depois de irem tão longe.

Afinal, viram-se diante da misteriosa porta fechada. Tinham acendido a luz da escada e puderam ver em detalhes quanta antiguidade misteriosa parecia emanar daqueles tijolos descobertos e tintas descascadas.

— Vai, Clara. O que você está esperando? — foi dizendo Mariana, em voz baixa, como se alguém pudesse estar escutando.

— Você não tem medo da coisa?

— Com você não, mas temos de acender a luz, para que o vampiro não ataque. Sabe, eles não gostam de luz.

— Mas se ele está paralisado, encantado... nós vamos precisar de luz é para enxergar, vou ligar a nossa lanterna e quando entrarmos você procura o interruptor. Tem que ter interruptor.

— Será que nós devemos mesmo entrar, Clara?

— Você não vai amarelar agora, vai, Mariana? Viemos até aqui... e eu acho que a coisa não se mexe mesmo.

— Tá, qualquer coisa a gente grita pelo vovô.

Clara não ficou muito animada, pelo que ela conhecia da coragem do avô. Mas afinal resolveu abrir a porta, começando pelo cadeado. Este até que funcionou bem, mas a fechadura da maçaneta já estava meio enferrujada pela falta de uso. Custou, mas a menina conseguiu fazer a chave girar, e a porta abriu com um guinchar incômodo. Mariana estremeceu; aquele barulho poderia despertar a coisa!

Afinal entraram, com Clara segurando a lanterna acesa.

O sótão, por dentro, era maior do que parecia, mas estava atravancado de caixas, baús, cabideiras e outros objetos velhos e empoeirados. Estava também já bastante escuro, pois a tarde caía e não entrava grande luminosidade pela clarabóia. Havia um excesso de teias de aranha pelos cantos e pelas ripas do telhado, o chão era de velhíssimas lages, gastas pelo tempo e cheias de rachaduras e buracos. Ante a visão das garotas, uma grande lagartixa subiu depressa pela parece, pondo-se fora do alcance.

— Procura um interruptor — sussurrou Clara.

Mariana procurou e achou, e acendeu-se uma lampadazinha esquecida no teto e quase inútil, tão fraca foi a claridade esparzida.

Elas deram uns passos tímidos à frente, procurando não esbarrar em nada.

E aí avistaram a “coisa”.

— Continua imóvel — sussurrou Clara. — Vem, rápida!

E puxou Mariana, que já não estava com vontade de prosseguir.

Agora, dava para ver que as roupas eram lustrosas e ostentavam lantejoulas, a essa altura desgastadas e mortiças, sem o antigo esplendor. O rosto era bastante assustador, de feições contorcidas num esgar sádico, como se eternamente colhido por um encanto que o paralisara.

— Está encantado — cochichou Clara. — Não tenha medo, Mariana.

“Mas que estranho”, pensou Clara. “Essas roupas parecem quase de palhaço. Mas como poderia existir um vampiro palhaço?”

De fato tinham várias cores, de vinho a azul escuro, passando por faixas amarelas e verdes.

Mariana se aproximou, já quase acreditando que aquilo era uma estátua, ainda que de material inidentificável. E a claridade era pouca, mesmo com a lanterna. Então, movida quase por instinto, ela chegou mais perto e tocou no braço coberto pela manga comprida, usando só o polegar direito,pois os dedos restantes apoiaram-se no braço da cadeira.

Ou viu-se um quase imperceptível “clic” e a COISA se moveu, de forma indubitável; estremeceu, soltou um grunhido e moveu-se desajeitadamente, como se tentasse levantar depois de tanto tempo...

E as meninas soltaram gritos agudos, Clara deixou cair a lanterna, e as duas se precipitaram em direção à porta, que nesse instante porém se abriu... e entraram de sopetão o pai, a mãe e o avô das meninas.

Elas olharam para trás... mesmo flagradas, todo mundo precisava fugir... mas o monstro voltara a se aquietar.

Foi Alcides, o pai, quem quebrou o silêncio:

— Bem, garotas, acho que precisaremos ter uma explicação geral. Não se assustem com o “vampiro”, é apenas um boneco.

— Boneco? Ele se mexeu! — balbuciou Mariana.

— Ele é muito bem elaborado, mas já está meio enferrujado. Antigamente conseguia se levantar totalmente, quando se acionava o botão que vocês certamente mexeram. Mas são anos e anos sem uso.

— Mas por que vocês guardam essa coisa...

— Isso — disse Miriam — é do tempo em que nós fazíamos um número de circo.

— Mas... não sabíamos... — murmurou a Clara.

O Vovô Clarêncio se adiantou.

— Crianças, eu sempre disse à Miriam e ao Alcides que não deviam ter tanta vergonha do passado. Afinal, era uma profissão como qualquer outra. E o número de mágica deles era bem interessante.

— Mágica?

— Vamos lá para baixo — disse a Miriam. — É uma longa história.

 

.......................

 

Depois de sentarem todos na sala, Alcides começou a explicação:

— Nós fomos de fato uma dupla de mágicos em circo itinerante, a Miriam era a minha assistente e ficamos conhecidos durante algum tempo. Depois ela engravidou da Clara, eu arranjei outro emprego e como o circo também estivesse na bancarrota, pegamos o boneco que era invenção minha e o guardamos.

— Com o tempo eu também arranjei emprego, eu e o Alcides passamos a nos envergonhar do passado circense. Sabem como é... há preconceitos contra esse meio e não achávamos que devíamos revelar a todo mundo. Tem muita gente que nos olharia como pessoas não sérias... e vocês mesmas poderiam ser alvo de “bullying” na escola.

— Nós não iríamos nos envergonhar, iríamos nos entusiasmar! — interrompeu Mariana.

— Bem... acho que foi um erro esconder de vocês. Papai sempre achou que devíamos contar.

— Mas como era esse número? — quis saber Clara.

— Bem, eu era o mágico Orozimbo...

— Orozimbo? — disseram as duas em uníssono, espantadas com a bizarrice do nome.

— Todos os mágicos usam nomes artísticos. Como eu me fantasiava todo, não tinha nenhum charme de galã, por isso resolvi usar um nome estrambótico. A Miriam era a Ariel, minha assistente.

— Escolhi o nome da Pequena Sereia — acrescentou ela.

— Nós fazíamos diversos números, mas esse automato de minha invenção era o Seu Draculoide. Fui eu que inventei.

— Você, papai? Você sabe fazer autômatos?

— Bom, Clara... já estou meio enferrujado. Eu mudei de vida, deixei tudo isso para trás.

— Mas foi muito difícil? — insistiu a menina.

— Nem queira saber. Mas eu tive alguma ajuda de pessoas que entendiam, até um eletricista. Mas resolvemos que o boneco não podia ser ligado em tomada, tinha que ter um mecanismo de relojoeiro muito bem funcional.

— O que vocês faziam com ele? — quis saber a Mariana.

— Era um número assustador... — comentou o Vovô.

— Isso mesmo. A cortina se abria, a platéia via essa figura medonha sentada, aparentemente dormindo... antigamente fechava os olhos, mas esse mecanismo já emperrou. Então nós o chamávamos e ele continuava dormindo. A Miriam ia até ele, para chamá-lo mais de perto e acordá-lo, então acionava disfarçadamente o mecanismo.Ele se levantava barulhentamente e o Valdir, nosso ventríloquo. Escondido um pouco atrás falava com voz aterradora: — Quem é? Como ousam me acordar de meu sono vampírico?

— Eu acertei! Era mesmo um vampiro! — disse Mariana, rindo.

— Então ele se levantava rangendo e chegava a dar um passo para a frente, encarando a platéia. Tinha criança que se assustava, mas eu tratava de “acalmar” o seu Draculoide e o convencia a sentar de novo. Aí nós conversávamos e ele contava um pouco da sua vida de vampiro. Todavia ele não sugava mais sangue, tinha sido convencido pelo médico a trocar por molho de tomate, que é mais saudável.

As duas meninas caíram na gargalhada.

— Fazia muito sucesso — acrescentou Miriam — e eu e Alcides então fazíamos uma entrevista com o vampiro, que respondia... ou melhor, quem respondia era o ventríloquo. Era divertido...

— Por que vocês desistiram do número? — perguntou Clara.

ALCIDES – Ah, a gente se cansou.

MIRIAM – Era muito repetitivo, a gente não parava em canto nenhum, cada dia estávamos numa cidade diferente... quer dizer, não chegava a ser cada dia, mas duas vezes por semana... não tínhamos descanso.

— Aí nós voltamos para casa, nos demitimos do circo... primeiro eu tinha arranjado um emprego, e a Miriam já havia engravidado de você, Clara. Enterramos nossa vida passada, achávamos que nossas filhas teriam problemas na escola por causa dos preconceitos... vocês poderiam sofrer trotes por causa de nossa profissão... arranjamos empregos considerados sérios...

— Mas que bobagem! — exclamou Mariana. — Circo é coisa séria, requer muito talento...

— Sabemos disso — disse Miriam — mas nem todo mundo sabe. Mas hoje eu acho que foi um erro nosso, escondermos nosso passado até dos colegas de trabalho...

— Vocês apareciam na televisão? — perguntou Clara.

— Não, quase nunca... por isso fomos rapidamente esquecidos.

Clara mostrou-se pensativa:

— Sabem... eu gostaria de assistir esse número... vocês podiam fazer só para nós. Para relembrar os velhos tempos...

— Seria preciso fazer uma revisão completa no Draculoide primeiro... — observou Alcides.

— E isso é possível?

— Dá para fazer em uma semana. A Miriam e eu tivemos de estudar a mecânica do boneco.

— Então vocês fazem o número para nós vermos? — indagou Mariana.

— Até eu gostaria de assistir, depois de tanto tempo — interveio o Vovô.

— Mas tem uma grande condição — objetou Alcides.

— Nós já conversamos sobre isso quando descobrimos que vocês haviam descoberto.

— Que condição? — perguntaram as duas.

— Muito simples — esclareceu o Alcides. — Vocês duas têm que jurar por tudo o que é mais sagrado nunca mais voltarem a escalar calhas e telhados arriscando seus pescoços! Nós ficamos tremendamente preocupados com isso!

— Jurem agora — acrescentou Miriam.

Elas se entreolharam e, sorrindo, juraram de joelhos.

 

 

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27/8/2019 a 12/1/2023

 

Miguel Carqueija e Ronald Rahal
Enviado por Miguel Carqueija em 12/01/2023
Reeditado em 20/01/2023
Código do texto: T7693550
Classificação de conteúdo: seguro
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