Augusto Ângelo - Porque cantar parece com não morrer

1- Introdução

Um perfume, um lugar, uma foto, um pensamento, UMA CANÇÃO….

Quem aqui sabe dizer o que essas coisas tão diferentes têm em comum? Eu direi a vocês: é a capacidade de nos transportar para um lugar tão distante e que, por vezes, fica adormecido nas profundezas dos nossos corações.

Cada um de nós tem dentro do peito esse lugarzinho especial. Nele ficam guardados os melhores momentos de nossas vidas. Nossas melhores recordações. E é só acessarmos um desses pequenos estímulos… (pausa) Aí, pronto! Já somos transportados lá para dentro.

Uma experiência que toca cada um de uma maneira diferente. Dá pra chorar e dá pra rir. Também dá pra chorar e rir ao mesmo tempo. Um sentimento tão gostoso e tão triste. É até difícil de explicar… mas é bem fácil de sentir.

O nosso encontro de hoje tem o intuito de construir essas lembranças futuras para os mais jovens e de transportar os mais experientes para esse lugar. Lá no fundo da alma. Cada um do seu jeito… Cada um com as suas vivências…

A noite de hoje não é apenas sobre o Ângelo. É sobre todos os que já se foram fisicamente. É sobre os momentos que já se foram e, principalmente, é um recado para os que ainda estão por aqui, desenhando a sua própria história.

Então me diz: como você gostaria de ser lembrado? (pausa)

E, como não poderia ser diferente, a nossa história teria que ser contada em forma de canção, pois, como bem dizia o poeta: CANTAR é o que mais se parece COM NÃO MORRER!

Música: Enquanto engomo a calça

2º Augusto Ângelo Risuenho

Nascido na Zona do Salgado. Bragantino. Bragantino e bancário. Também foi filho, tio, avô, marido, pai e amigo. Se bem que “amigo” se enquadra em todos os outros adjetivos. AUGUSTO ÂNGELO NORONHA RISUENHO.

22 de janeiro de 1953, mas a história de hoje vai começar nos anos 70, quando já existia o violão. Foi amor à primeira vista. Jovem guarda bombando. Todos os jovens querendo ser Roberto Carlos.

Papai também queria, mas ele era diferente. Ele era um Roberto do interior, com uma personalidade e estilo próprio. Augusto Carlos, talvez? Acho que Augusto Ângelo soava melhor. Sempre a frente do seu tempo: calça boca de sino, motoca envenenada, carro vermelho, cabeleira esvoaçante (se bem que essa a gente sabe que não durou muito tempo).

Guitarrista e crooner da banda “Os Falcões” já aos 17 anos. As meninas suspiravam de paixão! Logicamente não cheguei a acompanhar. Apenas ouvi as histórias e imaginei. E como imaginei. O bicho era doidão.

Acredito que fosse algo mais ou menos assim. Som na caixa, Gutão!

Música: Meu carro é vermelho/ Rua Augusta/ Feche os olhos e sinta

3º Made in interior

Made in interior, com muito orgulho! Filho da geração de ouro! Ângelo, Piúca, Wanderil, Wanderley, Kaká, Índio, Edinho, Shell, Evandro, Bibico, Tatu, Fabiano, Koroty, Gabriel, Manoel Barros. Tia Rosilda, eu estou presente! E a história estava só começando. Mas Bragança foi ficando pequena para tanto talento. Pelo menos, para aquela fase da vida. Não só para eles, mas para tantos outros amigos e conterrâneos. Cada um foi tomando o seu rumo. O rumo do papai foi o Banco do Brasil – Manaus e depois Belém. Manaus e depois Belém... Juventude transviada! “Cidade grande são outros quinhentos”; trabalho, serestas, amigos, mulheres, trabalho - mas ele tirava de letra. O que ele não tirava de letra era a saudade de Bragança. Saudade dos pais, irmãos e dos amigos que ainda estavam por lá.

Cidadão do mundo? Mais ou menos…Sempre vinham os questionamentos:

“O que é que eu faço cá, nessa cidade, se a minha vontade é voltar pro interior. Pra viver a vida mansa: acorda, come e dorme. Sem neurose, ousadia, arranha-céu e elevador” (continua atual, não é?). Mas naquele momento já não dava pra voltar. Não de vez. Agora tinha Maria da Graça, Guto e Léo. Quem é pai sabe - e ele era bom no ofício. Não dava pra voltar, mas dava pra transformarem cada vivência em canção.

Música: Indecisão (3:47)

4º Pai e marido

O tempo não perdoa - e a gente sabe bem. Logo o Augusto Ângelo virou o adulto Ângelo. Pai e marido. Aqui foi quando eu parei de imaginar e comecei a acompanhar. Foi quando as nossas histórias se cruzaram. Ele não fez esforço para virar o meu ídolo. O meu herói. E não virou ídolo depois de morto não! Sempre foi. Ele era como um desses furacões que passa a cada 100 anos. Atípico feito uma pandemia. Conseguia reunir ao mesmo tempo duas características que se repelem por natureza: responsabilidade e irresponsabilidade. Eu e Guto não roubamos, herdamos! Cada um com o quinhão que nos compete. Papai também era engraçado, afoito, estressado, indiscreto, maluco, parceiro. O combo perfeito para as desventuras do dia a dia:

Sabe aquela música do Chico Buarque: “artista - é doido pela Portela, olha ele vestido de verde e rosa”?. Era bem isso.

Tenho certeza de que cada um aqui teria pelo menos uma história maluca para contar. Eu poderia contar várias.

Mamãe me diz que sempre foi assim. Desde que se casaram! 12 de janeiro de 1980. Dez dias antes de ele completar 27 anos. Guto já estava no bucho.

Inclusive, essa é uma boa história pra contar aqui.

Casa da sogra. Toda a canalhada reunida. Só agora a família da mamãe perceberia o “pau que estavam se esfregando”. Nessa eu não estava, mas sei bem como foi. O Guto conta pra vocês:

música: Aniversário de malandro (3:12)

5º Canário que muda pena

Já diria Luiz Gonzaga: “Canário que muda pena dói”. Em 1996, o papai precisaria trocar suas penas. Precisaria ampliar suas asas. Novos pássaros viriam para debaixo. Foi o momento da sua primeira grande perda - a morte do vovô. Amadurecimento a jato. Passaria de filho, para companheiro da vovó. Hoje eu sei bem como é, mas na época não sabia. Papai ligava todo dia para ela, para não falarem nada de importante. Passavam horas no telefone. Adoravam cornetar a vida alheia, discutir política, gastronomia, futebol - sendo que nem jogar bola o papai jogava.

– Eles não entendem nada de esquema tático. Só falam baboseira. Meu Deus, quanta perda de tempo! - pensava eu.

Mal sabia eu o que destino me reservava, não é, mãe?

Aliás, dos que ainda têm mãe ou pai, quem lembrou de ligar para eles hoje? Tem que ligar. Tem que levar pra passear, tomar um sorvete, dar um giro. Nem que seja pra uma programação mais ou menos em um domingo vadio, tipo ir ao teatro pra cantar e contar histórias de um defunto. Não pode deixar pra depois. A gente não conhece o amanhã.

Papai sabia que não poderia deixar para depois, por isso as viagens a Bragança tornavam-se ainda mais frequentes.

Bragança, Ajuruteua, a Patokada, o Rex Bar, os festivais, as serestas sem fim. Todos saíam ganhando. E a história de vida dele ficava ainda mais recheada.

Papai montou uma escola de samba, ganhou diversos festivais, criou canções, fez muitos amigos. Ele é um Risuenho e os Risuenhos são assim.

Talvez seja soberba da minha parte, mas tenho a impressão de que a história de Bragança e dos Risuenhos se confundem. Aliás, a família Risuenho deve muito a Bragança, mas acho que Bragança também deve um bocadinho aos Risuenhos.

Música: Bloco de Xote: Quando chega o verão/ Espumas ao vento/ Eu só quero um xodó (4:00)

6º O maior de todos

O maior de todos!! Na verdade, o maior de todos eram os outros. Principalmente os menos bem-aventurados. Essa era a maior virtude do papai: enxergar nas pessoas o que ninguém mais enxergava. É a virtude que tento passar para os meus filhos.

Aristides Lobo, 54: as pessoas mais ilustres desse país almoçaram por lá. Alguns almoçavam semanalmente:

- “Filho, deixa eu te apresentar um dos maiores cantores que o Pará já viu!”

- “Olha, esse só não foi galã de televisão porque tinha um dente torto.”

E assim ia. Eram cantores, lutadores, fruteiros, árbitros de boxe. Tinha de tudo.

Papai apresentava os amigos relembrando momentos que provavelmente nunca existiram. Pelo menos, não da forma que ele relatava. Mas era bonito de ver como a pessoa se sentia.

Ataliba do MMA, Pato Rouco, Sapa Feia, Jones Kennedy...

Papai contava que o Pato Rouca era cantor. Nunca vi cantar. O que sei é que ele quase nem conseguia falar de tão rouco. Esse almoçava em casa quase todo dia. O sonho dele era que o papai fizesse um dueto com ele na frente da Lobrás. Dizia que iriam sair estribados. Pato Rouco era tão apaixonado pelo papai que as vezes perdia a mão na hora de tentar elogia-lo, certa vez, nos contou no almoço que, quando novo, o papai era loiro e tinha os olhos azuis. Papai ficava muito puto!

O Sapa Feia, que Deus o tenha, era o cara da música do Roupinol. Mas isso já foi depois. Papai era um grande incentivador. Acho que os caras iam lá em casa pra ganhar uma dose de autoestima (e, vez por outra, um trocado também). O Sapa passou um tempo meio mal das pernas, nessa época ele ia toda noite lá para casa. Eles jantavam juntos e depois iam tentar compor alguma coisa. Quando a música do Roupinol estourou, ele foi correndo lá pra casa contar pro papai. Eu me lembro muito bem. O papai vibrava! Não deixava de ser uma vitória dele.

O Ataliba era um caso à parte. Foi vizinho do papai na época das vacas magras, quando o papai morava na Pedreira. Ataliba estava em casa toda tarde. Ele ia tomar café conosco. Acabou virando meu amigo. Foi até segurança da nossa banda. Papai nos contava que o Ataliba era fera, isso há uns 20 anos. O Ataliba ficava cheio de pompa. Grandão. Talvez essa tenha sido a única vez que o tiro saiu pela culatra.

Acontece que o papai contava tanta história do Ataliba, que ele acabou resolvendo que deveria voltar a lutar. Lá fomos nós: papai e uns 10 perus. Vários estão aqui. A molecada empolgada, o papai tenso. Era chegada a hora de vermos um dos nossos ídolos em ação! Afinal, conheceríamos um lutador de verdade e era cada história top!

16 de agosto de 1996 - Torneio dos Gladiadores 2. Ginásio da UEPA. Ataliba x Jorge Patino (o “Macaco”). Soa o gongo (alguém apita um gongo no palco). O adversário, uns 18 anos mais novo, sai com mais de mil pra cima do Ataliba. 30 segundos de luta - muita peia. Dava pena. A gente não estava entendendo nada. O papai só gritava pro juiz: “Acaba, pelo amor de Deus! Paaaara, que vão matar o pobre.” A bolsa da luta não ia dar nem pra pagar os curativos. A sorte do Ataliba é que tinha quem pagasse a conta.

Mas também tivemos os nossos grandes momentos. Jones Kennedy: Árbitro da Federação Paraense de Boxe! Se na vez do Ataliba o gongo soou para a nossa desgraça, agora o gongo era nosso aliado. Início da temporada 98/99 de Boxe, o campeonato ia começar e a Federação não tinha o gongo. Jones Kennedy pediu e o papai virou patrocinador master da federação: doou o gongo! Lá fomos nós pra Icoaraci prestigiar a inauguração do gongo. Eu nem dormi. Imaginava algo como o papai dando o pontapé inicial em uma partida de futebol do PSG. Tipo o Ayrton Senna. Contei pra todo mundo. Até hoje a Amanda me encarna nessa história. A luta foi mais ou menos – um calor puto e uns 12 gatos pingados assistindo, sendo que 5 tinham ido no nosso carro.

Mas o grande momento não foi esse não. O gongo foi o pontapé inicial. Ano 2016: Jogos Olímpicos do Brasil. Primeira fase do Boxe: Azerbaijão x Cazaquistão. Adivinhem quem era o juiz?? Isso mesmo: Jones Kennedyyyyy!! Na falta de ter para quem torcer, a rapaziada acabou torcendo pelo juiz. E nós que pensávamos que a nossa casa seria a única a ter ligado a televisão para torcer por ele. Fico imaginando o que deveria estar passando pela cabeça do papai: "Da Aristides Lobo para o mundo!!!”

Eita, cara porreta!

música: Netas cantando Andança

7º A pandemia

Até que chegamos em 2020. Não dá vontade de lembrar, mas são momentos que nunca devemos esquecer.

Dia 17 de março de 2020 - Aeroporto Internacional de Val de Cães. Ali eu começava a entender que as ondas que estavam quebrando no Pacífico também quebrariam no Atlântico. Meu último plantão antes de os aeroportos se fecharem - Lisboa/Belém. Brasileiros voltando da Ásia e da Europa tentando evitar o inevitável.

Voltei pra casa assustado, tomei um banho e torci para que o papai estivesse certo. Papai achava que o vírus não sobreviveria ao nosso clima. Que ficaria tudo OK. Nunca saberei se ele realmente achava isso ou se estava apenas fazendo o que sabia fazer de melhor: ser pai. Acalmar os ânimos.

Mas ali já não tinha pai que desse jeito. A semana seguinte veio para carimbar o início dos piores dias da nossa geração. Nessa hora, o ciclo de vida da pandemia e do papai começaram a se espreitar: Manaus e depois Belém.

Assistíamos aos jornais atônitos, sem acreditar no que estava acontecendo em Manaus. O contador de óbitos disparava e o relógio do fim da linha acelerava na regressiva.

Dia 27 de março de 2020 - Dia Mundial do Teatro. Como bom anfitrião, papai inicia os trabalhos e recepciona a pandemia com sucesso. Manaus e depois Belém.

(vídeo da pandemia) (Vídeo do papai tocando violão e vídeo do papai na piscina)

Música: Volta

8º As viúvas

Quanta gente bacana se foi. Filhos órfãos, mulheres viúvas, homens perdidos. Já não existia rico, nem pobre. Os dias tinham mil horas. As horas tinham mil incertezas. Cada casa era um universo particular.

Nenhuma mãe deveria ter que enterrar um filho. Nenhuma esposa deveria ter que enterrar seu marido.

MÚSICA: Onde anda você / Chega de Saudade/ Mais um adeus

9º Vida e Morte

Morte e vida: as gêmeas que nunca se encontram. Uma a gente conhece bem, a outra é uma misteriosa senhora do além. Uma é amada; a outra, temida! Mas não dá pra imaginar a vida, se não existisse a morte. Afinal, que graça teria viver pra sempre? Que graça teria, Maria da Graça?! As lembranças não seriam lembradas, a saudade não seria saudosa, a própria vida não teria um norte. Afinal, quem é você, Dona Morte?!

Um dia a gente descobre! Enquanto isso, a gente segue o baile. O baile de máscaras da existência. Nascemos, crescemos, sonhamos, imaginamos, fazemos mil planos. Com a certeza de que o tempo é passageiro e a ilusão de que viveremos por 1000 anos!

MÚSICA: NOITE DOS MASCARADOS

10º Até breve

Papai morreu no dia 11 de abril de 2020, início da pandemia. Todos ainda muito assustados e comovidos. Dentre as centenas de mensagens que recebi, uma me marcou muito. De um amigo do trabalho – Felipe. Ele me contou que havia perdido o pai há mais de 20 anos. Quando ainda era adolescente. Lembrou que aquele havia sido o dia mais difícil de sua vida. Que entendia bem o que eu estava sentindo e me consolou relatando que o tempo transformaria toda essa dor em saudade e lembranças boas. Também me alertou de que eu precisaria cuidar da minha mãe.

Pensei muito sobre o que ele me falou. Pensei por diversos dias. Na verdade, penso até hoje. Afinal, qual o real sentido da vida?

Vou dizer o que eu acho. Cada um de nós tem uma missão. Uma pequena missão a concluir no micromundo que habitamos. Deus nos dá um pequeno espaço de terra e um sopro de tempo, e temos que fazer o melhor possível nesse período.

Papai fez o que deveria ser feito: ele me fez feliz, fez a mamãe feliz, fez os amigos felizes. E, principalmente, papai foi feliz! Não dá pra não lembrar o meu velho sem um sorriso no rosto, sem o apelido carinho que ele dava a cada um, e o elogio que ele sempre trazia na ponta da língua.

Parabéns, pai! Sua missão foi concluída com sucesso! Pode descansar em paz!

Amigos, muito obrigado pela presença de cada um de vocês. Significa muito pra nós. E hoje, três anos depois, consigo compreender o porquê de o papai não ter tido um velório. Certamente, porque não teria lugar nessa cidade em que coubesse tanta gente. E tinha que ser em um dia feliz. E definitivamente aqueles não foram dias felizes.

Ah, e antes que eu esqueça, teve mais uma última coisa que o Felipe me falou:

- “Léo, a vida é assim mesmo. Os ciclos vão se fechando. Hoje, todos estão chorando e amanhã ninguém mais vai se lembrar, apenas você, seu irmão e a sua mãe”.

O Felipe estava certo. Tenho certeza de que amanhã ninguém mais vai se lembrar dele. Amanhã ninguém mais vai lembrar...

Acontece que hoje ainda não é amanhã!

(Eu apito e entra a escola de samba. Pode ter uma chama de repique de mão.

MÚSICA: samba-enredo

Léo Risuenho
Enviado por Léo Risuenho em 05/06/2023
Código do texto: T7806005
Classificação de conteúdo: seguro