Neblina e a Ninja capítulo 3: Perseguição nas muralhas

CAPÍTULO 3

 

PERSEGUIÇÃO NAS MURALHAS

 

 

A polícia estava no terraço. Todas as pessoas que haviam estado como reféns lá se encontravam, tentando reconstituir o crime. Madeira, tenso e seco, sentindo-se algo ridículo por causa da presença de Neblina, comandava o interrogatório.

A viúva da vítima não estava lá. Ficara em estado de choque. Madeira dirigiu-se a Elvira Huguenote, uma das moradoras identificadas no vídeo:

— Bateram na minha porta. Eu fui ver no olho mágico e era a Elza, aqui. Eu abri, é claro. Não podia imaginar que ela estava sob mira de armas. Aí eles me pegaram e me trouxeram para o terraço, para diante daquela mulher terrível.

Todos os depoimentos eram semelhantes. De algum modo os Bandidos Negros haviam penetrado no prédio e aí, capturando morador após morador – tinham matado dois cachorros com tiros silenciosos – comboiaram a todos para armar a cena fatal no terraço.

Os funcionários do prédio foram chamados e interrogados. Alguns tinham sido incluídos no arrastão; outros não se encontravam na hora.

O “seu” Barbosa, por exemplo, lusitano de cabelos brancos e chefe da portaria, chegara bem depois. Admitira, francamente, andar com as chaves do edifício constantemente.

— E eu cá sou um gajo honesto, ó raios. Ou Vossa Excelência crê que eu mandei fazer cópia das chaves?

— Limite-se a responder ao que eu pergunto — respondeu Madeira, de mau humor. — Além disso eu sei que essas chaves são incopiáveis.

De fato, as chaves de abertura daquele prédio seguiam a técnica de memória digital, de que só o fabricante e os proprietários do local detinham o segredo —

ou assim se julgava. Nenhum morador ou funcionário venal faria cópias a seu bel-prazer.

Madeira voltou-se para a faxineira Arlene.

— E a senhora? Pegou nas chaves hoje?

— Inspetor Madeira, eu não disponho dessas chaves. Peço emprestadas quando é preciso, só isso.

— Isso é verdade, Barbosa?

— É sim senhoire.

— E hoje a senhora usou o chaveiro?

— Não senhor.

— Como fez para entrar no edifício? A que horas entrou?

— O Hercílio abriu para mim. Eram quase sete da manhã.

— Quem é o Hercílio?

— Sou eu, chefe.

Adiantou-se um homem baixo e magro, com aspecto de mandrião.

— Você também é porteiro?

— Sou, sim senhor. Hoje eu peguei às seis.

— Você não estava no vídeo.

— Eles entraram pelas onze, não é? Eu estava na rua.

— Você trabalhou até que horas?

— Até as dez. Nós nos revezamos. O Chaleira ficou no meu lugar.

— Quem?

— O Chaleira, isto é... o Cordovil. Nós chamamos ele assim.

Madeira já sabia quem era o Cordovil. O detetive Cordeiro cochichou-lhe:

— Isso coloca o Cordovil em situação difícil, considerando que não houve arrombamento. Concorda, Madeira?

— Em princípio sim, mas o prédio não tem só uma entrada. Ele nega ter visto alguém entrar, não é?

— Já o ouvi falar isso. Vamos confirmar.

Madeira dirigiu-se a Cordovil:

— Quando foi que você percebeu os assaltantes?

Cordovil, um preto novo, torcia as mãos de nervosismo:

— Não sei direito, seu doutor. Eu tava na portaria quando eles vieram de dentro e me pegaram.

— Você não tem idéia de como eles entraram?

— Não faço idéia, seu doutor. Pra mim aquela mulher é bruxa.

Madeira voltou-se para Hercílio:

— Você saiu à rua logo que passou a portaria para ele?

— Não, inspetor. Fui para o meu alojamento, assisti o final do programa do Juraci Torres. Quando o Show Matinal entrou, assisti um pouquinho e saí. Devia ser vinte para as onze...

— Você o viu sair, Cha... digo, Cordovil?

— Vi sim, seu doutor. Isso foi bem antes de me pegarem.

— Ah, é?

A voz cristalina interrompeu de súbito o interrogatório. Todas as cabeças se voltaram para Neblina, que se encaminhara na direção de Hercílio.

— Perdão, você disse que assistiu qual programa?

— O do Juraci, uai. Aquele de prêmios. E depois, quando entrou o Show Matinal...

— Que horas entra esse show?

— Às dez e meia em ponto.

Subitamente, Neblina agarrou Hercílio pela gola e puxou-o com uma força que não se esperaria daquela moça pequena. A jovem falou-lhe entre dentes:

— Miserável! Foi você quem abriu a porta aos bandidos.

— Me largue! Você está louca!

— Pare, Neblina! Você não tem autoridade... — começou Madeira, impaciente.

— Inspetor, prenda esse homem. Ele está mentindo. Hoje excepcionalmente o Show Matinal não foi ao ar e o programa do Juraci avançou pelo seu horário. Pode verificar.

— Você tem certeza?

— É claro. Já topei com esses álibis de tv antes, por isso conferi a programação do horário antes de vir para cá.

Hercílio protestou — É mentira! Inspetor, essa mascarada é que está mentindo. Está jogando um truque para me pegar em contradição. A programação não mudou coisa nenhuma!

— Mudou, sim!

Um menino de oito anos fôra o autor da intervenção. Aproximou-se da mascarada e abraçou-a:

— Puxa, Neblina. Você é maravilhosa mesmo. Pegou o homem mau na mentira. Eu vi o programa, é como você disse.

Neblina sorriu.

— Obrigada, querido. Não há porque discutir. É só verificar qual foi a programação.

Madeira confabulou com Cordeiro e Lustosa e dirigiu-se a Hercílio:

— O senhor está detido para averiguações. Será libertado caso sua inocência seja confirmada.

— Não, parem! Eu confesso! Eu conto tudo, mas não me prendam! Minha mãe não suportaria isso!

Quase se poderia dizer que Madeira ficou decepcionado diante da confissão: dar o braço a torcer a Neblina. Para dar prosseguimento ao interrogatório foi preciso acalmar os protestos de diversos moradores, revoltados contra Hercílio.

— Fale tudo — disse Madeira. — E dessa vez pobre de você se disser uma mentira!

 

 

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Dizem que na Jerusalém dos tempos de Cristo, cercada por muralhas, contrabandistas faziam pequenas passagens secretas em locais remotos dessas proteções. Por tais passagens, conhecidas como “buracos de agulha”, transportavam seus contrabandos utilizando camelos novos. Esses animais passavam bem até chegar na corcova – aí é que eram elas. Ao que parece, foi

por isso que Jesus fez aquela famosa declaração: “É mais fácil um camelo passar por um buraco de agulha do que um rico entrar no Reino do Céu”.

Em Nova Brasília, como em outras cidades subterrâneas, existiam também muralhas e movimentação de contrabandistas e outros marginais por elas. Tais muralhas separavam a cidade das áreas subterrâneas selvagens, criadas como reservas da natureza livre, e consideradas regiões perigosíssimas. As muralhas possuíam vários níveis e geralmente não chegavam até o topo de vidro cristalino ou de camadas geológicas naturais. Eram muito complexas e cheias de esconderijos. Hercílio andava muito por elas, em busca de negócios escusos, e dessa maneira terminara por entrar em contato com os Bandidos Negros.

Alegou Hercílio ter sido ameaçado de morte para concordar em dar passagem livre aos quadrilheiros, e em seguida revelou onde ficava a base dos mesmos, nas amuradas.

Madeira era um homem de ação. Pediu reforços, deixou uma parte no local, terminando de tomar depoimentos, e dirigiu-se com o restante para o local indicado. Hercílio ia junto para guiá-los. E Neblina, é claro, acompanhou-os.

Dirigiram-se, com prioridade de trânsito, para a Passagem do Noroeste. Neblina, que recebera, meio às escondidas, cumprimentos de Isabela e Ruiz (que haviam permanecido no prédio), viajava agora ao lado de Madeira, num veículo trepador de seis lugares. À esquerda, na frente, ia o motorista; atrás, algemado, ia Hercílio, cercado por dois corpulentos detetives.

— Se tivermos sorte — ia dizendo Madeira — acabaremos hoje mesmo com essa quadrilha.

Neblina não acreditava nisso. Sabia que uma caça nas muralhas seria extremamente problemática. Mas não quis esfriar o entusiasmo do inspetor.

Quando o “hovercraft-lagarta” — aparelho extremamente maleável — chegou à última guarita, que antecedia uma longa terra-de-ninguém, Madeira voltou-se para Neblina:

— Acho melhor você não vir mais adiante.

— Isso está fora de cogitação, Inspetor Madeira. Não precisa se preocupar comigo pois eu possuo treinamento para essas coisas.

— Você tem uma autorização de ordem superior. Se lhe acontecer alguma coisa, eu não tenho responsabilidade.

— Nem eu vou responsabilizá-lo. É o quanto basta.

Madeira voltou-se:

— E agora, Hercílio, vamos a pé, porque adiante é muito íngreme. Saltem!

Saíram todos e Hercílio começou a tremer como vara verde:

— Eu não posso acompanhar vocês. Eles vão me matar! Se sabem que fui eu...

— Você só tem que nos indicar o local exato da base. Se quer que isso pese em seu julgamento...

— Mas eu já disse. Três quilômetros adiante, em volta do lago, mas do lado do bosque. Na estação biológica que foi abandonada por falta de verbas.

— Você nos acompanhará até poder nos indicar com o dedo. Aí você volta com dois de nós.

Neblina observou: — Inspetor, pelo que eu estou entendendo nós vamos atacar de uma só direção.

— Não pretendo dispersar minhas forças.

— Mas não seria melhor cercá-los?

— Isso seria ótimo se fosse possível usar helicóptero, mas desde que aparelhos voadores foram proibidos...

— Mas se não os cercarmos, eles escaparão!

— Não se formos suficientemente rápidos. E dispenso outros palpites!

Neblina mortificou-se e calou a boca. Madeira era o chefe da operação; o que ele decidisse teria que ser obedecido.

Começaram a andar sobre a muralha, larga como a da China. Neblina afastou-se de Madeira. O comissário Empédocles, homem idoso, de cabelos brancos, mas firme o bastante para tomar parte em operações perigosas, segredou à garota:

— Não fique triste com a atitude do Madeira, menina. Ele é um bom homem, mas muito cabeçudo. Não pode admitir que você oriente a polícia.

— Não estou orientando, mas ajudando.

— Eu sei. Participando. No começo eu também estranhei. Mas nós todos estamos percebendo que você sabe muito bem o que faz e é muito valorosa.

Só que isso fere o orgulho do Madeira. Você deve perdoá-lo e ter paciência com ele.

Neblina sorriu:

— Só espero que a tática dele dê certo.

A muralha tinha muitas irregularidades que, a certa altura, desaconselhavam o uso dos hovercrafts. Havia desníveis que o pessoal tinha que pular ou galgar. Era uma travessia perigosa. A certa altura, um quilômetro antes do lago, Hercílio apontou à distância:

— Vejam!

Numa bifurcação descendente, duzentos metros além, dois sujeitos instalavam uma antena ou coisa parecida na pedra.

Madeira disse: — Não nos viram. Vamos para cima. Oscar, Ataíde, fiquem com o Hercílio.

O numeroso grupo policial avançou. Barracuda, como era conhecido o polícia mais corpulento da tropa, com cerca de 2,05m (seu verdadeiro nome era João Alberto), comentou em voz alta:

— Eu quero ser o primeiro a achar essa ninja. Se ela acha que bate em homem, vou tratá-la como trataria um homem.

Tinham perdido de vista os dois sujeitos. Avançando um pouco mais chegaram a um mirante que ficava bem por cima do local procurado.

Lustosa e Madeira adiantaram-se e, de pé, observaram pela mureta o plano inferior onde trabalhavam os dois indivíduos, meio ocultos por densa vegetação.

E foram vistos por eles.

Os dois, cujas letras “BN” agora eram visíveis em suas blusas, sacaram logo as armas. Lustosa e Madeira recuaram para fora da linha de tiro.

— Peguem os dois! — gritou Madeira. – Disparem a geléia!

Vários policiais se posicionaram e dispararam suas bazucas portáteis de geléia paralisante. Neblina avançou pela amurada, pensando na burrice de Madeira e Lustosa, que poderiam ter se deitado no chão para observar por baixo da mureta, sem o mesmo risco de serem vistos.

Começara a perseguição.

Sem ligar para mais ninguém, Neblina correu em grande velocidade e desceu para o patamar inferior assim que avistou um trecho de muita vegetação protetora. Algumas casinhas improvisadas apareceram na borda daquele plano, num trecho que descia com certa suavidade para a terra-de-ninguém. Homens e mulheres corriam à toda, saindo dessas cabanas e passando para outros níveis, mais abaixo. Policiais disparavam e as cabanas, duramente atingidas, ruíram fragorosamente.

As várias bifurcações da muralha dividiram perseguidores e perseguidos. Neblina estava num trecho em que o patamar superior descia, quase alcançando a mesma altura do médio. Agora Neblina avistava ao longe uma casa maior, de tijolo, e um grande grupo que saía às pressas. A casa tinha um andar que dava para a estrada superior da muralha; por uma das portas do andar “térreo” saiu uma mulher alta, com o “S” estampado na blusa.

Neblina e a Ninja avistaram-se à distância.

Entretanto o bombardeio da polícia, que avançava por baixo, provocou uma nuvem de fumaça e o pânico na quadrilha. A Ninja bateu em retirada, com uma grande mochila às costas e uma arma a tiracolo.

O caminho fez uma curva. A uns oitenta metros da casa, já sem avistá-la pela interposição de uma grande pedra, Neblina parou, motivada por uma intuição.

Seus ouvidos eram muito apurados.

Erguendo o rosto Neblina avistou o Bandido Negro que, faca nos dentes, mergulhava sobre ela, vindo da muralha mais elevada.

Neblina abaixou-se rapidamente, com grande simetria de movimentos; quando o atacante caiu sobre suas costas ela se ergueu numa cama-de-gato estupenda, jogando o bandido, com horrendo berro, no abismo.

Antes que pudesse refletir no que houvera, Neblina viu-se diante de outro bandido, surgido detrás da pedra e portando uma espingarda-laser. Seu rosto estava cheio de ódio:

— Ah, sua cachorra! Mataste o Tistu! Pois vais morrer agora!

Ergueu a mira e disparou. Neblina só teve tempo de se cobrir com a capa: o raio laser foi refletido e bifurcado pelas lantejoulas astronômicas e os reflexos atingiram o bandido que, com outro horrível grito, caiu queimado e fulminado.

O cadáver se estendeu no chão, soltando a arma. A moça aproximou-se mas, ao tentar pegá-la, a carabina, em precário equilíbrio, caiu pela ribanceira, explodindo lá embaixo.

— Talvez seja melhor assim — filosofou Neblina, em pensamento. — Menos uma arma para matar.

Quando conseguiu se reunir aos policiais, escutou a queixa atormentada de Madeira:

— Ela fugiu. E o pior é que ela matou dois dos meus melhores homens!

— Então empatamos — respondeu Neblina secamente — porque eu matei dois dos piores homens dela!

 

 

 

 

Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 05/07/2023
Código do texto: T7829711
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