A noite começou faz tanto tempo. Não percebi o tempo passar. Olho o céu e vejo a lua alta, ela só aparece assim quando é tarde da noite. O céu está limpo de nuvens o que propicia ver o firmamento. É um campo vasto de luzes resplandecentes, em seus sistemas e luzes piscantes, e encantadoras para nós.  Hoje quase não as vejo estava tão introspectivo, tão dentro de mim mesmo que esqueci de tudo.

   Levanto-me, ando pela varanda larga e com muitos vasos de plantas que cuidei para ela. Estão lindas, plenas de folhas e algumas floridas. Se balançam com o vento leve que sopra sobre nós. O vento vem acariciar meu rosto, sinto como se, ao passar por mim, fosse como uma mão a secar minhas lágrimas. A outra toca meus cabelos em um afago carinhoso e gentil. As plantas se balançam com o vento como se me olhassem e dissessem: "Aqui estamos e te amamos. Não te deixamos."

   Coloco minhas mãos no corrimão da guarda corpos da varanda e aperto com força. Dói. Dói muito, mas quero sentir dor. Não apenas a que está dentro de mim, quero a externa, no corpo.

   _Ahhh! Ahhh!

   Grito bem alto, forte e irado. Talvez assuste as plantas e o jardim, mas as estrelas não. Continuam lá piscando. O vento parou, as plantas quietaram, nada se mexe, nem eu.

   _Por que dói tanto? Droga!!!

   Respiro fundo. Várias vezes. Relaxo as mãos. Começo a ter mais controle sobre mim. Olho minhas mãos ainda crispadas e apertadas, com menos força, mas ainda assim. Elas são meus instrumentos de trabalho. Retiro toda a tensão delas e esfrego uma na outra aliviando a pressão e o estresse que lhes causei. Estão frias, quase geladas.

   _Desculpem. Vocês não têm nada a ver com o que aconteceu.

   Resolvo entrar, antes me despeço da varanda, das plantas e do céu nimbado de estrelas. Todos estiveram aqui me acalentando.

   Entro devagar na sala de música. Lá está meu piano. Branco, de cauda, antigo, amigo. Como temos histórias juntos! Ando até ele. Passo lentamente a mão por ele, um carinho. Ando a sua volta apreciando sua forma, seu tamanho, seu espaço. Devagar sento-me na banqueta, levanto a tampa do teclado. Dedilho, sem apertar as teclas, só acaricio de leve. O dedinho, atrevido, aperta uma tecla do tom grave. Entre lágrimas sorrio do som. Um dos que mais me chamou a atenção quando menino.

   _Olá amigo. Somos só nós dois outra vez. Vamos criar belas composições juntos, mais uma vez. Só que hoje, amigo, estou caído. Quero tocar e expulsar minha dor. Sinto muito se vou fazê-lo sofrer. 

   Lágrimas inundam meus olhos e nublam minha visão. Não vejo as teclas. Não importa, sei onde todas estão, o som que fazem, o som que posso tirar delas. Não queria tocar sofrendo, mas preciso.

   Me arrumo na banqueta, acerto os pés nos pedais, elevo os braços, alongando, coloco as mãos delicadamente nas teclas e, com a dor do sentimento ferido e destroçado, firo meu amigo em suas teclas amadas por mim, toco a dor que sinto. Na verdade, não toco, martelo o piano.

   Deixo na primeira música que toco espargir toda a dor da rejeição aos nossos planos. Martelo as teclas em uma música clássica que lembra guerra. É assim que me sinto, em um final de guerra, e o pior, derrotado. Os sons graves são os mais tocados, sinto o piano vibrar em minhas mãos. Ver o teclado? Não enxergo uma tecla. As lágrimas se transformaram em cachoeira caudalosa e dolorida. Todo a segunda música no mesmo estilo da primeira. A raiva ainda habita meu íntimo.

   Xingo alto. E os porquês não param te serem ativados em minha mente. Todos eles, todos.

   Por que não percebi?

   Por que não vi?

   Por que não senti?

   _Deus o que aconteceu?  Eu não fui descuidado, fui amoroso, fui cuidadoso. Não deixei faltar nada. Nada mesmo. Me desdobrei para dar tudo a ela, não só material, mas emocional, amor, carinho, cuidados mil. Tínhamos planos e os fomos cumprindo até há pouco tempo. POR QUÊ??????

   Esmurro o piano. Suas teclas gritam de dor e receio do que posso fazer. O fazem em uníssono, unidas na tentativa de me acalmar. É uma cacofonia de sons graves, semi graves, agudos. Um grito de alerta das amadas teclas de que preciso voltar para a vida. Grito junto com elas e o barulho reverbera em toda a casa.

   Deito minha cabeça no teclado, a testa tocando várias notas ao mesmo tempo. É um choro conjunto, das teclas doridas e o meu destroçado. Assim ficamos por uns instantes. Meu cão, Rufus, preocupado, vem para perto de mim, apesar do barulho. Passa sua pata gentilmente na minha perna. Late baixinho. No meio do caos em que me encontro o ouço. Levanto devagar a cabeça e ele encosta a sua na minha perna.

   _Oi amigão. Desculpa te assustar. Vou melhorar. Mas por hora preciso tocar mais forte. Fica no quarto longe do barulho alto. Se eu fizer silêncio demais vem cá me ver. 

   Afago sua cabeça e meu amado amigo de longa data me lambe a mão e gane me respondendo. E vai para o quarto.

   _Desculpa meu amigo, mas prefiro tocar com violência e tirar a raiva, a frustação de mim do que beber.

   As lágrimas deram um tempo e consigo ver meu melhor amigo, meu piano. Começo tocando Marcha turca, de Mozart. Tem em certo momento um movimento forte. Não sei em que momento eu passei a tocar Für Elise, de Beethoven. Mas toco, toco, toco e toco. Tantas músicas e todas com tom de fúria. Nas teclas, a cada batida, deixo a dor, o medo, a frustração, a revolta, a tristeza, a derrota. Choro de novo e me perco numa sequência de mesmas notas que parece que enlouqueci. Toco sequencial as mesmas, num círculo contínuo. Recobro os sentidos e vejo o que estou fazendo.

   Penso nas atitudes que me fizeram chegar aqui, nesse tormento de sentimentos. Aí toco Debussy, Clair de Lune. Pensando em que momento o ápice do nosso casamento foi tão terrível para ela. Era o nosso bebê. Nosso sonho. Como ela pode? Não entendo. Nunca entenderei.

   Compus uma música para ele assim que soube que estava a caminho. Esperei tanto por esse momento, ter um filho.

   _Tanto Deus! Tanto! Será que não mereço ser pai?

   Choro alto, soluço, meu corpo todo acompanha o choro.

   _Sabe Deus, ela não tinha o direito de fazer isso. Era um pedaço de nós dois. Uma vida Deus.

   Fecho a tampa das teclas com fúria, com muita raiva. Me debruço no piano que, calmamente, me acolhe e escuta. Deixa que eu derrame sobre ele toda a minha dor.

   Depois de um tempo chorando eu lembro da frase da enfermeira, tentando me consolar, após eu ver o bebê de seis meses de gestação morto, por um aborto feito pela pessoa que deveria amá-lo, a mãe dele.

   _Senhor, fizemos o que foi possível para salvá-lo. Mas, fora violência do aborto, ele tinha um problema de má formação grave no coração.

   Me olhando bem forte nos olhos falou:

   _Não estou tirando a culpa dela em fazer um aborto em estado avançado de gravidez. Apenas expondo que ele poderia não sobreviver. E, pai, ele o fez pai, mesmo não estando aqui. Sei que não tira sua dor, mas o teve e o tem no coração.

   A olhei por muito tempo. Não a via, só o nada. O médico chegou e falou palavras parecidas. Trouxe mais notícias, a mãe também não resistiu. Eu estava catatônico. Só balancei a cabeça, meu primo e advogado cuidou dos trâmites legais e do enterro. Pedi para enterrar meu filho longe daquela megera, que teria para sempre minha raiva.

   Volto ao agora e toco a música que fiz para meu filho. Ele, meu filho, precisa de um nome. Já tinha pensado em Tiago que significa o que Deus protege.

   _Sua música, filho terá o nome que lhe dei agora, Tiago. Que Deus o proteja sempre.

   Toco com o coração saltando dentro do peito como se meu menino aqui estivesse a ouvindo. Sinto Rufus se encostar em minha perna e depois se sentar para ouvir comigo a música que compus com o coração para meu filho. Depois de repetir estou mais leve. Saio com Rufus até a varanda e vendo as estrelas faço uma oração pelo espírito do meu filho.

   _Senhor, hoje levastes aquele espírito, seu filho, que por um tempo me emprestou como filho. Fui feliz sendo pai dele. Não fui um pai fiel, pois não percebi o que a genitora dele faria ou fazia. Cuida dele, Pai. Sei que não preciso pedir, mas ficarei mais aliviado lhe pedindo. Empresta sua mãe para ele por um tempo. Obrigada Senhor.

 

   Pela manhã, após o enterro do meu filho, a mãe da víbora que o matou veio falar comigo.

   _Ela estava deprimida. Por favor não sinta raiva dela. Nem foi ao enterro dela. Enterrou o bebê longe dela.

   Olho-a calmo e respondo.

   _Deprimida é doente, ela era sem caráter. Me traiu, grávida do meu filho e o tirou, o abortou para ficar com o amante. Lógico que não o enterraria junto dela. Ela não o quis. Não sinto raiva dela. Sinto um sentimento bem mais profundo. Espero não ter mais contato com vocês. Nunca mais.

   Virei e fui embora. Minha mãe deu-me o braço e meu pai passou o braço pelo meu ombro e me levaram para fora do cemitério. Deixei o corpinho do meu filho aqui, levei sua essência comigo, é o mais importante. Sua alma Deus cuidará, apesar de eu ter me rebelado contra Ele.

 

  Meses passaram. A vida continuou.

  A dor?  Ah! Essa fez morada em meus sentimentos.     

  Um ano passando pela vida. Trabalhei, compus, fiz concertos, viajei com duas orquestras, me apresentei em uma turnê, o pianista está presente, a alma dele, a sua essência que dava vida a sua obra ainda não voltou. O espírito, que ora se abriga nesse corpo, está em tentativa de retorno.

Sibeli Figueiredo
Enviado por Sibeli Figueiredo em 23/09/2023
Reeditado em 10/10/2023
Código do texto: T7892708
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