A FACE OCULTA DA GALÁXIA capítulo 3: O artefato

 

(No capítulo anterior o grupo da Cosmopol faz uma escala na Roda Espacial Zênite, de onde tomarão uma espaçonave para chegar a Sombrio. E nesse local Valentina tentou flertar com Vésper, o que esta não aceitou e ficou irritada com a situação. Na sequência, já na condução, Vésper obtém de Beng mais informações sobre o objeto cósmico que deverão resgatar.)

 

CAPÍTULO 3

 

 

 

O ARTEFATO

 

 

Tinham dado a ela o nome ridículo de Petúnia. O mesmo nome da namorada do Gaguinho. Mas era uma boa nave, dessas que podem transportar 50 passageiros e uma carga extra de autômatos, além de animais. Raramente, porém, tais viagens enchiam. Aquela tinha 28 passageiros, alguns acompanhados por robôs que porém viajavam à parte, para não danificarem as poltronas. As espaçomoças eram excepcionalmente bonitas e eu tive pena delas, por terem de agüentar a Valentina. Por outro lado, o serviço de cozinha era dos melhores, o que me alegrava, pois uma das coisas que eu mais gosto na vida é comer bem.

Assim, lá pelas tantas – ainda não havíamos varado a barreira do hiperespaço – dirigi-me ao restaurante de bordo, separada de meus companheiros de viagem, dada a pouca afinidade e a independência que eu gostava de manter. Eles que comessem quando quisessem, eu estava com fome naquela hora.

Quando adentrei o resplandecente refeitório, vi quanto era cedo: apenas quatro pessoas. Uma moça, num canto, que parecia mais interessada em ler; e numa única mesa, um casal gorducho de meia-idade e um sujeito muito velho e de bengala. Esse chamou a atenção: excessivamente vestido – até com chapéu e cachecol – de óculos escuros e movimentos caquéticos. Suas mãos tremiam ao movimentar os talheres; e só conseguia beber com canudinho. Coitado, pensei. Não quero ficar assim quando envelhecer.

— Sente aqui, minha filha. — disse o homem mais novo, com aparência de quinze anos mais velho do que eu. — Ainda temos um lugar vago.

Era chato recusar; e eu ocupei a última cadeira. Então ele se apresentou: Eduardo Pintoff, engenheiro, e sua esposa Florência. Depois ele se voltou para o homem mais velho:

— E esse é o meu pai, Doutor Laurêncio Pires Freire de Azevedo. É um grande sujeito!

(Ou pelo menos, pensei eu, tem um nome grande.)

Apresentei-me, é claro, como Ester de Oliveira, em viagem. Estava acostumada a fingir o que não sou. Apertei a mão de Laurêncio, senti como era trêmula, e ele gaguejou:

— É... um p-prazer conhece-la, do-dona Ester... é mu-muito bonita e... elegante, sim, é isso.

— Papai sempre galanteador! — riu-se Eduardo, sacudindo as flácidas bochechas.

Pedi um chá de premizonas com torradas ao patê de columbrada verde, e procurei manter uma conversação normal. Falou-se de quase tudo: explorações na Cabeça do Cavalo, teoria do desdobramento dimensional, estilos de talheres, a última moda norte-marciana, análise de clássicos da antiguidade como a Ilíada de Homero, criação de rãs antarianas, os poemas de Baldum Kutin e assim por diante.

Quando veio a sobremesa — pedi compota de pequi — o doutor, que passara o tempo me olhando de soslaio, gaguejou:

— V-você vai pa-para muito longe?

— Não... não creio... depende do que o senhor chama de longe.

— Corisco você acha longe?

— Não, é claro que não. Apenas 150 anos-luz...

— E Sombrio, é lo-longe pa-para você?

Engoli de mau jeito e quase cuspi fora o doce. Engraçado, ele não gaguejara uma frase inteira! Bem, a gagueira é uma coisa psicológica. Olhei para os outros: estavam sérios, ocupados em degustar.

— Creio que é bem mais distante.

Valentina passou junto a nós e me tocou o ombro.

— Olá. Seus novos amigos?

Apresentei Valentina — aliás, Eleonor Garbo — e ela comentou:

— Vocês vão amanhã no circo?

Achei que ela estava ficando biruta.

— Circo? Aqui dentro, minha cara?

— Não, sem brincadeira. Há alguns artistas de circo a bordo e vão dar um espetáculo amanhã, às 15, hora galática padrão..

— Nós iremos, sem dúvida — respondeu Florência. — O capitão Fleischman nos avisou. Vai ter acrobacia, malabarismo e palhaços!

Um circo! Era só o que faltava! Mas talvez fosse divertido.

Naquela noite, no camarim de Beng (bem entendido, não tirávamos a roupa em presença mútua; usávamos o lavabo), já sentada sobre a cama, procurei levantar algumas questões que vinham me preocupando. O diretor já ligara seu perturbador portátil de escuta (PPE) e podíamos falar à vontade.

— Eu pensava que iríamos numa astronave própria, porque uma nave de passageiros? Isso só vai incrementar a minha paranóia.

— Chamaria muita atenção se fôssemos numa nave oficial, teríamos que disfarçá-la, convencer a burocracia local...

— Quero ver na hora de voltarmos... se tivermos que sair de Sombrio a toque de caixa...

— Nós vamos baldear três vezes. De Corisco passaremos para Antares e daí para Cosmorama, e aí num único salto o resto do caminho.

— O que é afinal de contas essa chapa que nós procuramos, Beng? Não será perigoso manipulá-la?

— Pelo que eu estou informado, pode-se tocar nela; não é quente nem radioativa.

— Mas de onde veio essa coisa, afinal, e qual é o seu tamanho?

— Tem cerca de 1,041m de altura e 0,892m de comprimento. A espessura é calculada em duas polegadas.

— E de onde veio?

— Segundo o relatório do Professor Gaspar, ela existe há bilhões de anos.

— O que? Isso é impossível! Um objeto artificial...

— Quem falou que é artificial, Joana?

— A coisa está ficando complicada, Beng. Por que razão você me disse que esse artefato é necessário à estabilidade do Cosmos?

— Veja bem: isso é coisa que você não pode comentar com ninguém. Nem com Valentina, nem com meus auxiliares...

— Ah! Ah! Ah! Vai dizer que não falou com eles?

— Se leva a coisa para este lado, talvez seja melhor eu não falar mais nada...

— Não me invoque, Beng. Se começou a falar, vai me falar tudo. Não vou arriscar minha pele sem saber com que estou lidando. Se eu me zangar, posso ser bastante desagradável e você sabe disso.

Ele deu uma risada meio nervosa.

— Você continua temperamental, pelo jeito. Depois, muito tempo sem homem...

Para mim isso foi a gota d’água. Pulei da cama, agarrei a primeira cadeira e mostrei-a a ele:

— Vai falar ou não?

Ele conservou uma calma irritante.

— Esse artefato não é o único que existe. Há vários espalhados pelo universo, flutuam no vácuo nas proximidades de grandes nuvens de gás e detritos cósmicos e são aparentemente imunes às atrações gravitacionais. Realizam uma lenta rotação em seu sentido do comprimento e são atravessados por todas as formas de radiação. Parecem cristais opacos, mas é impossível corta-los, fundi-los, destruí-los. Resistem a qualquer análise química, física ou espectroscópica. Não se sabe do que são feitos; parecem vácuo sólido.

— Eu sempre leio revistas científicas e nunca vi nada a respeito... — assim dizendo, recoloquei a cadeira no lugar.

— É claro que não, Vésper! Isso é segredo de estado.

— Mas por que, homem? Por que fazem segredo disso?

— Simplesmente porque, na opinião de alguns, a manipulação desses objetos põe em risco o tecido espaço-temporal e pode abrir um rasgo no continuum, trazendo assim ameaças desconhecidas ao nosso universo.

— Homem, você quer dizer simplesmente que essas coisas são lacres dimensionais e que se um deles for roubado nós todos vamos para o beleléu?

— Você sintetizou brilhantemente — foi a resposta irônica.

— E como pode estar flutuando há bilhões de anos, se naquela época, que se saiba, não havia vida no universo?

— Como eu disse, não são objetos artificiais.

— Você está querendo dizer que são divinos?

— Essa — ele escandiu cuidadosamente as palavras — é uma conclusão que nenhum de nossos cientistas ousou endossar.

— Ninguém assinou por baixo, mas é uma conclusão lógica. Jesus! Você quer que eu mexa com um objeto divino?

— Qual é o problema?

— Como qual é o problema?

— Você é católica, ainda que não praticante, conforme consta de sua fé-de-ofício na Cosmopol. Ora, os católicos não comungam, isto é, não recebem hóstias que crêem ser o corpo de Deus? Então por que você não pode tocar num objeto divino? Aliás, para quem crê em Deus, toda a matéria e energia não são divinas, ou seja, não são a Criação?

Calei-me. A grandiosidade daquilo tudo aniquilava meu espírito.

Comecei a ter medo da minha missão: algo que nunca me acontecera antes.

 

 

(Vésper está impressionada com o alcance de sua missão: o que poderá ser o artefato na verdade? Porém, a missão da Cosmopol de alguma forma vazou, e Vésper vai descobrir que existem dois outros grupos atrás do artefato, e que esses grupos estão na mesma espaçonave. Logo as coisas vão começar a acontecer de verdade.

Vejam em breve nesta escrivaninha:

 

CAPÍTULO 4

O CIRCO)

 

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Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 13/12/2023
Código do texto: T7952788
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