O jornalista e o pastor

Parte I: o jornalista

Cláudio era jornalista formado na Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Ele não sabia o que era mais incoerente: ser um ateu e ter estudado em uma faculdade de óbvia e notória influência religiosa, ou ser radicalmente paulistano, adorar a vida da capital, mas ter sua alma mater na maior metrópole caipira do país. Não faz mais sentido em pleno século XXI dizer que Campinas é uma cidade pequena e menos urbanizada, mas este tipo de estigma cabia na época de formação de Cláudio, que acontecera há muitos anos atrás, afinal ele teve que se mudar por conta do pai, médico que foi acionado para trabalhar.

Dedicado ao mundo da cultura, estava em um estágio da vida que queria apenas sossego. Tinha um contrato, muito por conta da importância que já tinha arregimentado para si, com a Companhia das Letras, em que precisava escrever um livro por ano, além de ajudar como editor especificamente para algumas obras que poderiam concorrer a prêmios literários mundo à fora, além de escrever uma coluna para Folha de São Paulo.

Ser colunista era algo que era uma mixórdia de sensações. Era mais fácil escrever um artigo de opinião por semana do que um livro por ano, é verdade. Ao mesmo tempo, que dificuldade encontrar inspiração para escrever sobre cultura toda semana, sem a rotina de um escritor que fica mais pesquisando do que efetivamente escrevendo. Além disso, sabia que a Folha não estava interessada no seu conteúdo, mas no seu prestígio. Colunistas de opinião são tão controversos que existem veículos que colocam ao final do texto o seguinte aviso “Opinião: este texto é de inteira responsabilidade do colunista e o veículo não tem suas opiniões refletidas nas suas ideais”. Este tipo de aviso, todavia, é importante em um país que não ensina jornalismo em escolas e a diferenciação entre artigo de opinião, editorial e reportagem. Aliás, a coluna de opinião é algo paradoxal: o jornal contrata, não porque quer saber o ponto de vista de determinado autor, quer apenas seu prestígio emprestado para vender mais anunciantes e assinaturas, o colunista escreve, não porque quer se manifestar, mas porque quer receber. Nem coluna é mais. Fazia sentido chamar de coluna de opinião quando era realmente uma coluna dentro de um jornal físico. Com o desenvolvimento da tecnologia informática e as mudanças culturais, a maioria dos que leem, isto é se realmente leem, passam a fazer dentro de portais, não em jornais físicos. Como deveria escrever sobre cultura em voga, e estava pensativo como coluna não era mais coluna, decidira escrever sobre a possibilidade da implementação de inteligência artificial na dublagem, assunto que se tornara bem relevante no começo de 2024. Eis o que escreveu.

“Inteligência artificial na arte: onde ficam os homens

Com o desenvolvimento das tecnologias informáticas, é patente que este assunto chegaria ao meu escrutínio em algum momento. Como a indústria cinematográfica no país ainda tem um desenvolvimento pouco consistente, o que inviabiliza investimentos vultuosos em tecnologias disruptivas, é no setor de dublagem que alvorecem as primeiras discussões e mobilizações sobre a substituição de capital humano por máquinas, o que amedronta fortemente sobre um futuro em que o desenvolvimento tecnológico age como agravante para as desigualdades sociais com a democratização do desemprego, da precarização das condições de trabalho e da obsolescência dos trabalhadores. O setor é fortemente influenciado pelo capital externo na medida que as principais empresas que contratam estes serviços são empresas estrangeiras de países de desenvolvimento industrial mais alígero, geralmente Estados Unidos, e geralmente empresas gigantescas: Disney, Netflix, Warner, Viacom etc.

Eu realmente assisto muito poucos filmes atualmente, então não me sinto parcial em minha discussão. Dica sobre ver poucos filmes: se quer ser uma pessoa que possa apreciar arte largamente, não trabalhe com isso. Eu confidencio apenas para mim à minha preferência em ver dublado em português ou no idioma original com legendas em português: muitas vezes vejo a discussão sobre dublagem corrompida por presunção e por pensamentos capacitistas ou aporofóbicos, e isso me cansa sobremaneira, me cansa tanto que eu prefiro não participar da discussão. Incomoda-me também um pouco como essa preferência por filmes legendados ocorre principalmente dentro de uma lógica imperialista e eurocêntrica: geralmente a opção em ver o idioma original, ao menos o que me parece, é mais um espaço para perpetração de culturas hegemônicas sobre outras, tanto que não consigo acreditar que escolas de cinema mais marginais, como a iraniana, realmente são respeitadas e são vistas com uma visão de igualdade. Na minha opinião, quando um europeu vê um filme asiático, ele está fazendo algo como contemplar um bicho em um zoológico, se vendo como superior àquilo, mas isto é outra discussão. Eu realmente acho que gostos e preferências são assuntos de foro íntimo inquestionável, salvo motivos legais, e não questiono isso, mas será mesmo que são preferências pessoais ou mais uma decisão impregnada de códigos e glosas materialmente auferíveis. Talvez eu tenha deixado aqui minha opinião implícita, e se você não entendeu, lamento. Talvez seja melhor esperar sair este artigo opinativo na versão legendada.

Enfim, sobre não ter posição. Eu realmente não a tenho. Evidentemente que fico com o coração aflito pensando que os impactos que a tecnologia pode causar em curto, médio e longo prazo para profissionais desta área. Sei que a adaptação sempre é difícil, só não é mais difícil do que problemas financeiros. Mas eu realmente penso: é inevitável. O cinema enquanto arte de fotogramas é a prova que a realidade material está aí para mudar. Antes do século XIX não existia cinema. E ele demorou para se tornar próximo do que é hoje. No princípio, as metragens não conseguiam ser longas, não conseguiam ter som, não conseguiam ter cores e eram conhecidas como “teatro de pobre”. Hoje tudo isso mudou, seria muita petulância da minha parte achar que elas não seriam mudadas também no futuro e achar que estamos no ápice da história ou que esse status é permanente.

Queria transgredir essa discussão para além da dublagem e discutir sobre a obsolescência humana que está nos aguardando na arte, inclusive dando um próprio exemplo também na dublagem, este bem menos falado. Por conta da pandemia que acabou há pouco tempo, houve uma revolução na dublagem com a profusão da dublagem remota. Vários profissionais passaram a investir na possibilidade de trabalhar remotamente, algo que não existia anteriormente. Evidentemente que isto trouxe um impacto profissional e laboral muito grande. Segundo um profissional da área muito influente, cujo o nome não será revelado por razões óbvias, mas que tem declaração pública que podem ser acessada por qualquer um, a dublagem remota significava um avanço pois, segundo ele, as casas de dublagem somente tendem a lucrar mais com a dublagem remota na medida que elas “não vão precisar ter duas recepcionistas, uma pessoa para limpar o banheiro etc”. Esse tipo de declaração, mesmo que imbuída das melhores intenções e livre de malícia, revela que o movimento é muito mais uma espécie de autopreservação coletiva de um segmento de parte da indústria do que o pensamento, justo que acho, do desenvolvimento sadio da indústria artística como forma de desenvolvimento social e geração e distribuição de riqueza, afinal, parece que o desenvolvimento tecnológico só passou a incomodar quando ele ameaçou o seu emprego e trabalho, e não de outrem.

Será que a arte mesmo é um espaço em que o ser humano não guarda a sua própria obsolescência? Como crítico de arte me dói dizer isto, mas será que a arte realmente deveria ser preservada. Tenho há algum tempo pensando se meu trabalho está realmente agregando algo ou se estou apenas chupinhando em uma indústria que é alienante e que se formos realmente discutir nossa sobrevivência como espécie, se realmente não deveríamos repensar que arte e entretenimento podem ser descartáveis. Pobre não come filme, não come peça e não come livro. A questão ambiental urge e é relevante discutir se realmente é necessário ter incontáveis antenas nos grandes centros urbanos, ter satélites orbitando o planeta e extensos cabos submarinos sequestrando espaço dos biomas marinhos. Uma vida sem arte seria deprimente, mas será que a inteligência artificial não revela apenas, como eu tenho pensado a partir desta questão da dublagem, que os esforços humanos na arte são desnecessários e vãos? Fico pensando se não estamos fazendo que nem o pastor Sílvio Gonçalves, um homem que mente para si mesmo que acredita em deus para continuar fazendo o circo da sua vida continuar.”

Parte II: o pastor

A citação de Cláudio em relação ao pastor Sílvio não era fortuita. Como Claúdio era ateu e jornalista, não tardou a ter que realizar matérias sobre figuras influentes eclesiásticas, principalmente de religiões protestantes neopentecostais. Ele era um crítico feroz que alguns religiosos buscavam ter sobre as estruturas políticas constitucionais do país. Isso ocasionou uma natural rispidez entre os dois, piorada por conta de um episódio em específico.

Sílvio era pastor há mais de trinta anos, sendo o sacerdócio religioso a única coisa que realmente dizia fazer na vida, algo que era muito corroborado na visão de alguns dos seus biógrafos. O fato que todas as pessoas que já escreveram obras sobre ele serem fiéis das fileiras da sua igreja tornavam, evidentemente, essas declarações muito parciais. No mínimo duvidosas. Era um pavão, algo que certamente desagravaria figuras religiosas proeminentes de pontos de vistas mais conservadores. Não havia tema sobre o qual se furtava de ter opinião, evidentemente sempre estando defender a cristandade. Era realmente perigoso alguém discutir direito constitucional, história, psicologia, comunicação social, medicina etc apenas levando em conta o que a Bíblia dizia. Sílvio não sabia quem era José Afonso da Silva ou Paulo Bonavides, constitucionalistas fundamentais de obras cinquentenárias para formação atual estágio da hermenêutica jurídica constitucional e política do país. Como então podia bradar tão firmemente que aborto era algo inadmissível e a coisa mais abominável que podia existir no mundo se sequer tinha estudo sobre o bem vida tutelado de maneira constitucional.

Cláudio e Sílvio se encontraram pessoalmente apenas em um processo. Defendendo de maneira intransigente o que acreditava, ou dizia acreditar, ser sacro, Sílvio passou semanas ofendendo e influenciando como pôde para ser atacada, uma atriz que dizia ser religiosa, inclusive ao ponto de guardar sua virgindade até o seu casamento, mas que dizia que sua religiosidade era uma coisa, sua carreira outra. Esta atriz estrelava o papel de uma cozinheira que propagandeava sua caridade como elemento populista para angariar votos para o seu marido em uma disputa eleitoral. Seu marido, por ser um pastor nesta obra ficcional, acabava por encarnar algumas críticas que Sílvio recebia comumente, como o fato de ser um homem que se deitava com prostitutas e que mantinha o casamento como uma espécie de sociedade de crime. Sílvio dizia que a atriz era uma vagabunda, que o ator era um broxa e gay enrustido e que a emissora propagandeava o comunismo e o satanismo, como se fosse um ovo de uma serpente programado para chocar e destruir o país dentro de um plano engenhoso e meticuloso que ninguém realmente entendia, apenas o pastor Sílvio.

Cláudio escrevera uma coluna em que dizia concordar com a atriz. Colunista de cultura, entendia que o tema sobre a influência dos assuntos pessoais para os artistas poderiam ser relevantes ou não para o seus papéis como produtores de arte era muito relevante. No texto deixara escapar uma ou outra opinião sobre o infame religioso e foi acionado judicialmente.

Cláudio sequer conhecia direito o pastor Sílvio antes desse episódio, mas ele reforçara sua convicção ateísta. Se deus existisse, não podia um homem como aquele existir como seu representante na terra. E se realmente existisse alguma justiça, ele seria preso e ostracizado.

Enfim, a citação não era fortuita. Sempre que podia, Cláudio citava Sílvio como exemplo ruim, uma espécie de rancor que jornalistas têm sobre pessoas que tentam persegui-las ou intimidá-las. Cláudio era jornalista por tempo suficiente para saber que tipo de coisa poderia ser motivo de insegurança jurídica. Esperava receber um processo judicial, mas achava que o processo seria movido pelo dublador citado, tanto que se esforçou em omitir seu nome como forma de prevenção. Não imaginava que seria acusado de difamação pelo pastor Sílvio por dizer que ele era ateu.

Parte III: o jornalista e o pastor

Sílvio e Cláudio voltaram a se encontrar em condições desabonadoras. Desta vez em um centro judiciário de solução consensual de conflitos, novidade jurídica que não existia na época da lide anterior. O pastor Sílvio processou Cláudio por difamação, acusando-o de imputar-lhe fato ofensivo. Cláudio não entendera em um primeiro momento, mas com auxílio do seu advogado conseguiu deduzir que Gonçalves entendera que ateísmo era uma forma de difamação, algo inconcebível para ele. Cláudio era ateu forte, acreditava que deus realmente não existia, como podia ofender alguém com uma característica que acreditava ser motivo de orgulho. Eram na verdade dois processos, um no cível e outro no criminal, tecnicalidade desprezível para esta história.

- Senhores, existe possibilidade de acordo? - questionou o conciliador em sua primeira fala.

- Vossa excelência, gostaria apenas de uma retratação pública do querelado. Imputar-me o caractere de ateu é algo que contraria minha fé e me abala, também causando prejuízo à única coisa que tenho na vida, minha fé inabalável. Gostaria de direito de resposta no mesmo espaço que foi usado para me difamar, caso a lei e o direito permitam.

- Certo. Senhor Cláudio, o que o senhor tem a dizer sobre isso? - questionou o conciliador, que queria mais que aquela disputa cessasse.

- Recuso, vossa excelência. Em nenhum momento impus qualquer ofensa ao pastor. Muito pelo contrário, fiz apenas o que é de minha profissão: fiz uma análise da realidade. Não o ofendi, pois apenas asseverei o que acredito que é materialmente demonstrável: que o pastor que me processa não acredita em deus. Não é apenas uma conviccção da minha parte, é produto de uma criteriosa análise. Explico: analisando a história, é impossível descrever a realidade das instituições religiosas hegemônicas sem elas, em determinado momento, representarem coadunação ao poder político ou econômico. Sendo assim, é possível descrever as instituições religiosas, especialmente no Brasil, e especialmente no bojo das instituições religiosas protestantes neopentecostais, como interessadas em três coisas junto ao poder político formal: dinheiro, fama ou influência. Essas causas não são excludentes, mas basicamente pode-se dizer que existem membros religiosos que não querem nada com o poder político, a não ser a abstenção dele sobre os seus negócios, estes são os que querem dinheiro. De outra forma é possível dizer que existem membros de religiões que se importam também pouco com política, salvo para alimentar seus sonhos megalomaníacos, com a política sendo uma forma intermediária a alimentação do seu sonhos, uma vez que juridicamente é impensável igreja qualquer se sobrepor ao Estado de Direito. Por último, existem aqueles que querem influência. Estes são os mais ardilosos, uma vez que realmente se interessam nas discussões públicas, talvez por perceberem que religiões, em grande parte das vezes da história, dependerem da miserabilidade como elemento vital para sua sobrevivência. Como esta forma é a única forma que realmente creio que demanda ter algum ceticismo, e acredito veementemente na inteligência do senhor Sílvio em ter esse pragmatismo, minha dedução que ele é um homem cético não é de qualquer maneira uma difamação ou qualquer outra forma de ação contra sua honra.

- Bom, pelo visto não temos acordo. Continuemos o rito do processo cível em momento oportuno!

Gabriel Figueiredo
Enviado por Gabriel Figueiredo em 28/01/2024
Reeditado em 21/04/2024
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