A MELHOR COMPANHIA - CAPÍTULO 02 - O Cotidiano

A semana inicia cedo com a energia saltando aos olhos, sei como meu dia começa, mas nem sempre sei como termina. Uma ansiedade toma conta de mim imaginando fazer o que planejei e o desejo de ser surpreendido por algo inusitado porque todos os dias possuem potencial de acontecer de tudo, inclusive nada. O nada também é alguma coisa. No banho a água fria ajuda fazer download da alma para o corpo porque me identifico com o espírito das águas. Em seguida tomamos café assistindo ao jornal enquanto conversamos sobre os eventos culturais da cidade. De casa ao trabalho dela ouvimos músicas estranhas, as músicas que gosta. Quando ouve suas músicas o semblante muda, um sorriso no olhar aparece enquanto sonha acordada. Ella, a esposa, é atriz, “diretora e produtora de teatro a pensar sempre no próximo espetáculo”. A deixo no seu trabalho do teatro e sigo para natação. No caminho penso que poderia vir ao clube comigo e se divertir um pouco antes do trabalho, mas não consigo convencê-la.

O primeiro raio de sol surge, os raios de sol atravessam uma lente atmosférica mais espessa a esta hora, atravessando somente os raios vermelhos laranja e amarelo de tons claros, aquecendo meu rosto suavemente, contrastando com a água gelada da piscina que me faz tremer os lábios. A luz, a água, combinação perfeita para preparar a minha mente para um dia cheio de coisas para se fazer, uma animação da mente para o corpo. Essa foi a maneira que encontrei para superar o medo da água, ir ao encontro daquilo que me paralisa e ao mesmo tempo me identifica, flertar com meus medos me dá prazer. Agora sim despertei totalmente.

Olho para o relógio, são 07:50, chego ao trabalho e as 8 em ponto começa o serviço. Ainda agitado pelo esforço que fiz na água me ambiento com a luz artificial, ligo o computador e vejo a lista de tarefas me lembrando das coisas mais importantes do dia como a chegada de um estagiário. Ótimo, vem um estagiário, que coisa boa, um escravo (risos, muitos risos), brincadeira a parte olha a responsabilidade, o que eu disser pode fazê-lo odiar ou amar a profissão, mas vou fazê-lo amar o que faço. Então as 08:30 uma moça entra na sala e pergunta na porta a Ricardo, um colega:

- Por favor, estou procurando o Sr. Lorenzo

De longe percebo e aceno respondendo:

- Aqui, venha aqui, sou eu.

- Bom dia Sr. Lorenzo, sou a Fabiana, fui enviada para estágio sob sua supervisão, aqui estão os papeis.

- Estranho, pensei que fosse um rapaz, mas os papeis estão corretos mesmo.

- Sim Sr. Lorenzo, o rapaz desistiu e a vaga virou minha.

- Entendi, muito bem, então quero ver seus conhecimentos como estagiária, você pode fazer café?

- Como? Não entendi.

- Eu sempre quis dizer isso, foi uma piada, agora é o momento que você também ri fingindo que entendeu e gostou...

- Ah, tá. Esse é o meu primeiro estágio, estou nervosa e não sei como agir.

- Tudo bem, fique tranquila, podemos começar com você dizendo algo sobre o seu conhecimento e então direciono a partir da daí, o que acha?

- Bem, a antropologia estuda o homem e sua relação com as demais ciências...

Ella travou, tentei estimulá-la, mas vi que era muito tímida, então não era o momento de tirar leite de pedra, era o momento de descobrir do que ela é feita. Então pensei em um livro, o Tornar-se Pessoa e refleti que era hora de fazer parte da construção dela de modo passivo. Esse livro foi escrito por Carl Roger. Roger criou a Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) onde incentiva a autonomia no processo do amadurecimento baseado em três princípios. A primeira é a Consideração Positiva Incondicional, acreditar que o outro é capaz de construir caminhos para que aquilo dê certo; Empatia, sentir junto com a outra pessoa a dor e a alegria de vivenciar o processo de amadurecimento, ou seja, entender por que travou e ajudá-la visto que como estagiária entrou com pouco conhecimento querendo sair com mais conhecimento, mas neste processo preciso conhecer o seu tempo para não a atropelar; e finalmente, talvez mais importante que isso, ser congruente naquilo que me proponho.

Nas palavras de Fabiana captei os sentimentos, tons e timbres de voz, movimentos dos olhos, dos ombros, das mãos e das pontas dos pés, e é claro, da alma que são os olhos, pois denunciam se o que diz é uma lembrança ou sua criatividade e a partir daí utilizei as respostas compreensivas que são os reflexos de conteúdo, reflexos de sentimentos, respostas defensivas aceitáveis e respostas defensivas a serem evitadas.

Metade da manhã se passou e o clima ficava cada vez mais leve, e neste momento sugeri que Fabiana desenhasse 3 coisas que sussurrei bem baixinho em tom de mistério e assim o fez. Conversamos longamente sobre os desenhos e finalmente com tudo isso descobri de que forma poderia trabalhar comigo sendo confiante neste processo de aprendizagem no estágio.

- Fabiana, paramos por aqui, é quase hora do almoço, então amanhã começará seu estágio de verdade. Pretendo, amanhã em poucas palavras te dar uma leitura de vida, de civilizações passadas, atual e futura, te ensinando a ler.

- Mas eu já sei ler

- Vou te ensinar outro nível de leitura.

Então nos despedimos e minha mente voltou para outro compromisso, era hora de buscar Ella, a esposa, no teatro e almoçar juntos.

Rápido e ligeiro chego ao teatro e já estava me esperando, daí então fomos a um restaurante onde servem o seu prato preferido, um peixe regional, um filé grande e macio. Ella se diverte neste lugar contando novas ideias artísticas e pedindo minha opinião. Sinceramente não me sinto preparado para avaliar arte, mas me sinto especialista no sorriso dela, então baseado nisso a estímulo falar do que mais gosta, mas o almoço precisa ser interrompido porque ainda estamos no começo da tarde e daqui a pouco inicia o segundo horário de trabalho. Então a deixo no teatro e retorno para universidade.

Falando comigo mesmo me faço várias perguntas, entre elas, qual a tarefa da tarde, ah, sim, claro, vou participar de uma banca e isso me faz lembrar sobre os conceitos das palavras graduação, especialização, mestrado e doutorado. A graduação é uma profissionalização em curso superior para executar ou gerir um determinado tipo de atividade laboral, a especialização é para aquele graduado que pretende aumentar seus conhecimentos de forma consolidada e rápida para o fim específico da aplicação, o mestrado um curso de tempo médio para formação de professores em nível superior, e finalmente o doutorado para aqueles cujo o objetivo final é criar métodos, inovar, produzir conhecimento novo, ou seja, as pós-graduações não são uma sequência de formação e sim várias saídas específicas para finalidades diferentes, mas este conceito está ultrapassado e esquecido e só estou lembrando disso porque na minha família temos historiadores da educação. Mas o que percebo de fato é que essa trajetória foi toda esquecida e hoje há nas universidades uma trajetória retilínea, uma coluna ascendente. Desde o mestrado de minha irmã o conceito de pós-graduação mudou bastante. Mas na sequência à tarde foi cheia de gritos de vitória quando tudo finalizou e os estudantes finalmente lograram êxito e foram aprovados.

Então, chegando à noite, inicia a última saga. Hora de transformar toda nossa animalidade ancestral, essa energia contida pela nossa urbanidade em cansaço saudável. Ella, a esposa, vai dar aula de teatro e eu vou para academia, primeiro uma corrida só de dez minutos para sentir o sangue circulando, o coração batendo mais rápido, então o suor indica que já estou aquecido, é hora de partir para musculação. Cada esforço, cada série, retira totalmente minha capacidade de raciocínio, mas me eleva a uma condição reparadora, a mente passa a funcionar melhor à medida que o cansaço físico se aproxima, então chega a terceira etapa. Pensando em não guardar mais energia me entrego ao Moai Tai.

O ser humano, em seu processo de construção de civilização substituiu a exposição de seus instintos em formas rebuscadas de satisfação, mas isso deixa um espaço vazio na lista de coisas importantes ao ser humano. Então libero minha animalidade na hora certa para desestressar. E sinto em mim, o animal interior saciado. Em parte.

Já bem cansado olho para o relógio e vejo que é hora de buscar Ella, a esposa e finalmente ir para casa. A busco, no caminho vamos só observando as luzes da cidade com aquela calmaria de uma segunda-feira, um dia que não promete nada, mas tudo não passa de uma convenção humana, não é mesmo? Em casa, no aconchego do lar, as lembranças de um dia corrido vão se esvaindo e dando espaço a rituais que todos os casais têm, um banho, uma ceia leve, um olhar e Ella, a esposa, diz:

- Estou com sono, vamos dormir.

Durmo frustrado...

E assim se foi o segundo dia.

Shahriyar Tahan
Enviado por Shahriyar Tahan em 04/02/2024
Reeditado em 27/02/2024
Código do texto: T7991678
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