Da minha janela...

Sabem que vejo da minha janela?

Olhem comigo longe e imaginem a terra a tocar o céu. Relevos geológicos, decorados com pequeninas aldeias. As casinhas tão juntinhas. E na noite escura, são estrelas brilhando de vida, escondendo e acolhendo as gentes.

Agora mesmo, via a neve, pintando alguns altos, contrastando com a cor dos campos no Outono. Mais para o lado direito, entre pinheiros, numa zona protegida, completamente verde, sobressai um casarão, ex-sanatório. Isolado, entre verde, a pureza do ar, onde foram sarados muitos pacientes com problemas respiratórios. Vítimas de algumas doenças na altura sem panaceia.

Olho, perco-me em pensamentos. Vogo ao sabor da grandeza da natureza. Baixo um pouco os olhos e campos de vinhas. Geometricamente dispostas. Castas híbridas, cruzadas por agricultores, que fazem da cultura da terra um acto de sobrevivência.

Depois, uma rua que naturalmente sobe e desce (risos). As pessoas passam e eu nem ligo. Estou atento a dois cães. Daqueles rafeiros (vira-lata), sabem? Um branco com manchas pretas e outro todo preto e com as patas castanhas.

São duas peças. Onde está um, está o outro. O preto e castanho já levou uma panada de um carro, andava com a pata da frente no ar. Mas sempre de um lado para o outro. Curou esta mazela, passado dias já andava com a pata detrás no ar. Certamente tinha sido atingido por um carro novamente.

O curioso disto tudo é que as lições estão à vista dos nossos olhos. Estão escritas de uma maneira em que temos de reunir sensibilidade para as entender. Nesse momento, se houver Deus, ele está a falar connosco.

Sou um louco que gosto de acordar com a alvorada, vir de tronco nu, esteja neve, esteja sol, e ver da janela a vida que se agita lá fora. Abro-a e respiro. Os passarecos ficam agitados. Saltam, chilreiam. O raiar do dia é vida. Então aproveitemos essa dádiva, sendo melhores.

Além de a passear à chuva, sabem o que mais gostava de fazer quando tinha a minha husky siberiana em casa, em noites de lua cheia: sentar-me na tijoleira da marquise, através dos vidros olhar o céu. A lua resplandecente iluminava o meu canto. Nessa altura, a Tequilla vinha, com todo o à vontade sentava-se entre as minhas pernas. E esperava.

Eu começa a uivar e ela respondia. Era engraçado. Encantador, parecia que abraçava um lobo, o ser selvagem sentia-se seguro entre os meus braços. Se calhar, éramos dois selvagens domesticados (risos).

Mas a Tequilla, é como a baptizei, é uma cadela especial. Como todos os cães são para os seus adorados donos. Um dos motivos é que na altura em que fiquei com ela não queria cães, pelas mais variadas razões.

Tudo aconteceu num lanche cerca das 18 horas, num daqueles tascos manhosos de aldeia. Entra-se por uma porta de vidro, encaixado no alumínio. Frágil, mas aqui não há criminalidade.

Num dos vidros, colado por dentro, o anúncio das festas locais e das vizinhas, em cartazes com pirotecnia por fundo nas imagens.

Noutro vidro, colado também por dentro, pequenas folhas fotocopiadas a anunciar a morte de alguém e naturalmente a cerimónia fúnebre. Assinada pelo cangalheiro local, contratado pelos familiares do falecido, numa minuta desgastada.

Bom entrar na taberna, tasco, botequim, é um momento em que passamos portais, tal qual no cinema ficcional. Entramos e sentimos o calor da agitação, barulho. À segunda é futebol. Ninguém escapa dessa rotina (risos). Lá dentro escondem-se mil histórias. Cada um sabe uma, juntando toda a informação da aldeia. A vida do Joaquim do Manuel, da Maria, da Toninha e até a minha. Mas agora não, estou presente. Depois na minha ausência. Todos temos lugar nesse serviço noticioso de boca-a-boca.

Lá dentro, junto à entrada tem um banco em pedra, com uma inscrição a relevo interior por cima: Banco do Reús. Já me sentei lá. Não conto mais… fica para outra crónica. Se forem capazes de me perdoar (Risos).

Num canto, um grupo de seis, sete homens, já na terceira idade. Quatro deles dominam as atenções. Jogam à sueca. Entre sinais e contagens de cartas, vão realizando as vazas vitoriosas. De fora, todos comentam no final do jogo – durante o qual está tudo calado, atentos aos movimentos dos jogadores. É altura da ciência popular funcionar. Diriam os matemáticos equacionando probabilidades. Seja qual for um dos quatro jogadores, ele não sabe os naipes das cartas dos outros. Só a cor das suas cartas. Mote para tentar determinar se o parceiro tem bom jogo e quais serão as cartas dos adversários. No entanto, ao longo do jogo, equaciona novas probabilidade. Muda a sua forma de jogar, deduzindo com quase toda a certeza as cartas dos seus parceiros de mesa e enviando sinais ao seu parceiro de jogo.

O barbeiro local também é cliente do tasquinho, saindo e entrando, entre clientes, passa lá a tarde. Deixa a porta da barbearia aberta, todos se conhecem e todos se defendem. Por isso está relaxado.

- Sr. Alcobia, bebemos um? - pergunta-me sempre.

E vira-se para o tasqueiro e diz alto:

- Olha aí mais um para o Sr. Alcobia!

Naturalmente, educadamente, aceito e conversamos. Um pouco. Rimos e brincamos com o tasqueiro. Simplesmente, esquecemos que temos problemas lá fora nos esperando. Mas ali sentimo-nos protegidos. Aproveitamos, degustamos o vinho e o riso, das graçolas proferidas.

Refira-se a taberna tem um balcão em pedra, um mármore cinzento. Suspenso acima do balcão e do seu lado de dentro, um telhado em palha. Na parede, além das bebidas ditas espirituosas (risos), está também pendurado um quadro cujo motivo é caça. Há muitos caçadores aqui. Quando não existe um quadro, existem aquelas imagens embalsamadas dos animais mortos.

Uma vez vi uma águia embalsamada e repugnou-me ver a sua beleza natural, as suas asas abertas, ali mortas, para espectáculo dos clientes. Ela é linda a voar. Nobre, aproveitando as correntes de ar. É dotada de instrumentos sofisticadíssimos, o que faz dela, uma exímia predadora. Agora ali quieta. É horripilante e degradante. Não faz jus à sua grandeza enquanto viveu.

Não nos vamos perder mais. Senão nem conto a história da Tequilla (risos). Ah, ia lanchar. Para vos criar um pouquinho de água na boca aqui um lanche tem vinho verde ou espadeiro de agricultor. Feito em casa. Broa de milho, cozida em forno a lenha. Depois presunto de alguém que cria porcos, defumado em casa.

Bom, as azeitonas curadas em casa. De um sabor intensíssimo. Presunto e pratinhos de tripas (dobradinha). Na mesa ouve-se barulho, alguém fez asneiras ou pressupostamente jogou mal as cartas (risos).

A meu lado, um sujeito calado. Eis que o dono do tasco - há pessoas que têm ideias maravilhosas e lembram-se sempre nós (risos). Porque será?! – diz, ao calado homem, ao que parece cunhado dele:

- Olha aí o Carlos é que te pode ficar com um cão.

Raios só se lembram de mim para salvar o mundo (risos). Sou o homem dos duques ou cenas tristes (risos).

Como sou mole nestas coisas. Lá fui ver os cães, sabendo que ia trazer um. A aturar o sujeito ao lado no carro, boçal, dizendo:

- Esta raça só conhece pancada. Tem de lhe bater senão não prestam – dizia constantemente, muito grosseiramente – não lhe obedecem…

Não fosse por ele ser o dono dos cães. Parava o carro e colocava-o na rua. Mas engoli e lá fui.

Não havia, volta a dar. Bom, quando vi a Tequilla. Estávamos destinados. Sente-se. Toda branca, gorda, peludinha. Um floco de neve vivo. Raios, ainda por cima com um olho azul e outro castanho. Olhei e vi os outros seis da ninhada todos magrinhos, quase tísicos. Adorei a personalidade forte da cadela, não deixava os outros mamar.

Bom, peguei nela. Dava gosto sentir o seu pelo. Quis lá saber se tinha pulgas. Quando gostamos, apenas sentimos. E a mim apenas me apeteceu pegar nela e senti-la no meu colo. Tinha mês e meio.

Bom, isto de ser bom samaritano, tem sempre os seus inconvenientes. Já com a Tequilla escolhida e no meu colo, perguntei, receoso pela sorte do resto da ninhada:

- E os outros cães, já tem dono para eles?

E ele cruelmente respondeu:

- Se não os conseguir dar, vou matá-los.

Meu Deus não existe gente assim. Pensava desiludido.

Perguntei se podia vir comigo, ia a casa instalar a Tequilla. Ele acedeu. Ela foi aninhada no meu banco entre as pernas e ali ficou quietinha, durante a viagem toda. Nem se mexia, conduzi devagar.

Chegados ao meu apartamento, soltei-a. Coloquei restos de comida num prato meu. Água numa bacia. E disse ao sujeito:

- Vamos lá então tratar do resto da ninhada.

Fiz uns telefonemas. Os doidos conhecem-se e acedem sempre com altruísmo.

Consegui dar os seis cães. Um a um, até encontrarem dono, viajaram no meu banco aninhados entre as pernas como a Tequilla. Dei-os todos. Alguns foram abrigados temporariamente em casa de amigos até se arranjar dono. Por isso, a minha acção envolveu mais gente interessada em salvar os cães do seu triste fado. E sabem o que é mais valioso, além de saber que estão bem: pode passar um ano, pode passar dois, mas sempre que visito os irmãos da Tequilla, reconhecem-me logo. As cadelas de excitação, até urinam.

Voltando à Tequilla, os huskys não são cães simples para quem gostar de adestrar. São demasiado energéticos e as pessoas não gostam de perder tempo a compreendê-los. A Tequilla é muito especial e adoptou-me como dono. Por vezes, pensamos que os adoptamos, mas não, são eles que escolhem. É uma cadela viva, por isso, Tequilla.

Se calhar somos dois selvagens, domesticados pela vida, Talvez seja a razão de procurar o meu colo…

Nos gestos está a prática da fé. Todos acreditam em Deus, mesmo os que dizem que não. Agem, no entanto, segundo os seus princípios. Houve momentos que reclamei junto dele. Mas não fui atendido. Mas quando somos: é simples acreditar.

Se calhar somos atendidos porque crescemos. Conseguimos ultrapassar dificuldades na vida e ser sempre correctos. Talvez por isso. Quem sabe? Se calhar optamos mais correctamente?

A propósito disto. Aqui há dias fui visitar a minha mãe. Vive numa área rodeada por bairros, muita toxicodependência. A minha estimada mãe tem 82 anos, vive sozinha numa cidade grande como o Porto. E quer estar sozinha. Bom, onde ia?

Ah sim. Ao ir buscar o carro, abri a porta do passageiro à minha mãe, esperando que ela se sentasse, para fechar a porta. Um arrumador, e ela já sentada deu-lhe dinheiro. Mas das escadas do centro comercial em frente ao parque, onde estava o carro, um sujeito vinha em nossa direcção, a gritar e fazer gestos.

O tempo que eu levo a fechar a porta do carro à minha mãe. Nasce um filho para isto (risos).

Era um deficiente que conhecia a minha mãe por lhe dar dinheiro. Abraçou-se a ela. A minha mãe deu-lhe dinheiro e perguntou-lhe carinhosa se já tinha comido.

Vive com dignidade. Orgulho-me todos os dias de ser seu filho. Ela já não pode dizer o mesmo (risos).

Perdoem, comecei a escrever e perdi-me.

A minha janela é grande… (risos).

Kadú
Enviado por Kadú em 08/01/2010
Reeditado em 08/01/2010
Código do texto: T2018337
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