[O Choro que nos Purifica]

1o Tempo - Eu...

O garçon se aproxima da minha mesa e coloca outro copo; surpreso, eu digo que não pedi, que estou só, e não vem ninguém... "Por isto mesmo, quem sabe a sorte?..." Sorri, e admiti - sei a força do Acaso, isto mesmo, quem sabe se...? A desesperança derrubou no chão o meu olhar...

Mas em seguida, olho a rua, a praça, as árvores, o "flanelinha" habitual do lugar - tudo tão familiar, tão evocativo de outros instantes, de outra quadra melhor da minha vida. Estou só, e aquele copo vazio do outro lado da minha mesa, aqueles talheres não terão as tuas mãos. Pior: eu não terei as tuas mãos! Torno a olhar a rua, e choro... a cerveja gelada, a pinga marelinha - preciso desfazer este nó da minha garganta... Mais ainda: preciso desfazer este nó da minha vida - preciso te esquecer, e não estar por aí, a chorar sozinho, pelos bares.

Ando em busca de uma catarse... vou voltar à tua cidade, mas estarei só. Vou me hospedar no mesmo hotel da nossa primeira vez, aquele. Andarei na noite, irei aos mesmos bares onde fomos... E quando o vento frio soprar, eu estarei de pé, no canteiro central daquela avenida, onde os teus olhos, o teu beijo levaram-me, num raro momento mágico, aos tempos do sonho - éramos jovens, e começávamos, nós dois, a vida que o destino nos reservou, sem amarras... E este transporte aconteceu ali, naquela avenida - noite nossa - só nossa!

E aqui, longe daquele tempo, neste bar, com este lugar vazio a minha frente - só o choro me purifica, me alivia...

2o Tempo - Tu...

Desejo-te o mesmo que quero para mim - que consigas chorar diante do meu lugar vazio - desejo-te uma catarse assim: pensa que amanhecemos de nosso amor da noite toda... depois do nosso banho juntos, põe a mesa para o café da manhã - põe aquela delicada toalha branca, as flores brancas ao centro, como eu gosto, sei que sabes que é assim que eu gosto. Põe, defronte ao teu lugar, os meus talheres, a chávena branca, o pão, o queijo, e as frutas mais ao lado. Deixe tocar baixinho aqueles nossos blues...

Agora, contempla, como eu naquele bar, o meu lugar vazio diante de ti, os meus talheres intocados, a minha cadeira vazia junto à mesa - parta o pão assim, devagar... agora, o queijo branco (aquele que eu gosto). Tenta comer, se puderes... e tenta não chorar - o café quente talvez ajude, ou quem sabe o leite com café (bem quente, como eu gosto) seja mais eficaz... lá fora, uma revoada de maritacas ruidosas abafou as nossas vozes [sei que neste instante, até ouves a minha voz ausente].

Há uma outra cena propícia para a tua catarse; desta falarei pouco... aliás, por que este exercício tolo de lembrar o que nunca haveremos de esquecer? Sim... aquela cena, à beira d'água, quando um minúsculo passarinho equilibrou-se num ramo de capim agitado pelo vento... Volta àquele lugar, e espera... quem sabe um outro pássaro equilibrista volte e te encanta novamente... como nos encantou a nós, que contemplamos juntos esta cena?

Aí, tens não um, mais dois instantes para o teu choro purificador, para o alívio que só o choro pode agora proporcionar. E agora, longe, bem longe de mim, bem distante daquele tempo, o choro há de te purificar dos pensamentos escuros...

3o Tempo - eu e a escrita

Neste instante, eu estou fazendo o que posso, apenas o que posso - estou a escrever estas linhas, estes pensamentos. E sabe de uma coisa? Também é uma catarse excelente... ainda mais se ajudada por um bom vinho branco gelado. Tim tim??

[Penas do Desterro, 05 de junho de 2010]

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 05/06/2010
Reeditado em 10/06/2012
Código do texto: T2300603
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