DOSTOIÉVSKY E A PSICANÁLISE

Na nossa cultura contemporânea e mentalidade reinante, a cada dia, torna-se constatável a busca pela frivolidade e superficialidade em todas as dimensões da vida. Torna-se tão difícil tomas decisões que as pessoas adiam suas convicções e se refugiam em fantasias ou o irreal. Vivemos com o desejo de profundidade, já que é o “DNA” do “humanum”, porém, por outro lado, somos neutralizados e frustrados com inúmeras tentativas valorativas do mesmo “humanum”. Estamos na busca do que somos e desejamos ser, entretanto nem sempre nos perguntamos em que consiste o desejo, a busca e nós mesmos. Conduzir-se não pelo eu, mas por outros “eus” se tornou o modelo de vida pós-moderno. A busca pela interioridade sempre foi uma arma poderosa que escritores e pessoas inspiradas usaram para superarem a cultura do imediatismo, os determinismos sociais e uma moralidade de fachada, sem um verdadeiro empenho com autenticidade ética; sempre existiram pessoas que foram além do seu tempo. Duas percepções disto estão em dois marcantes pensadores: Sigmund Freud (1856-1939) e Fiodor Dostoiévski (1821-1881). Um foi o fundador do movimento chamado “psicanálise” que fez uma virada copernicana radical na história da humanidade ao pensar na possibilidade de um universo maior que o que vivemos e habitamos; este universo é “virtual” e está dentro do ser humano. Outro foi um dos mais frutíferos escritores russos. Ambos tratam da profundidade, interioridade e dinamicidade da alma humana; falam da mesma coisa por caminhos distantes; revelam-nos as mesmas contradições, ambiguidades e anseios humanos.

Dostoiévski, em “Crime e Castigo”, um romance escrito em 1866, narra a história de Rodion Românovitch Raskólnikov, um jovem estudante de direito que comete um assassinato e se vê perseguido por sua incapacidade de continuar sua vida após o delito. O autor não economiza tinta; debruça-se incansavelmente em decifrar o dinamismo psíquico de Raskólnikov ao longo da obra. De uma origem pobre, o principal personagem projeta para fora de si seu terrível e exigente superego que o conduz, em meio a culpas, ressentimentos, somatizações e neuroses. Sua consciência perturbada, ou melhor, o seu ego perdido, é conduzido em todo o romance como o maior drama de sua existência. Deste fato desdobram-se outros até o momento em que Raskólnikov entrega-se conscientemente pelo terrível crime que cometeu; é encaminhado para a Sibéria para pagar a pena do seu delito por oito anos.

Freud, o fundador da psicanálise, foi tocado pela sensibilidade prosaica de Dostoiévski, fato este, desconhecido de muitas pessoas. Crítico dos filósofos sempre apresentou algo que vai além de uma mera sistematização racionalista. Refletindo o autor russo em "Dostoiévski e o Parricídio" (1928), Freud destaca quatro facetas da personalidade de Dostoievski, são elas: o artista criador, o neurótico, o moralista e o pecador. Estas, para Freud, são conteúdos vastos e ambíguos percebidos ao longo da obra do autor. Sabe-se que o pai de Dostoiévski foi assassinado e o escritor sofria de epilepsia. Na lógica edipiana, em que o filho numa tenra idade odeia o genitor do mesmo sexo, Freud percebe uma identificação de Dostoiévski com seu pai, desejando que este morra (simbolicamente). Esta sua neurose não muito reelaborada ao longo de sua vida fez com que seus personagens fossem a representação deste seu inconsciente conflito interior. Raskolnikóv em “Crime e Castigo” é a personificação de alguém que vive a vida “escravo” de seu criminoso e pesado superego que ocupou o lugar do seu “eu” nas relações com as pessoas e objetos. A grosso modo, podemos dizer que a psicanálise longe de ser um saber abstrato e irreal, apresenta-se como umas das inúmeras oportunidades que os seres humanos possuem para olharem dentro de si mesmos, às avessas, e poderem re-modelar o seu único caminho em busca da tão desejada felicidade.

André Boccato
Enviado por André Boccato em 28/07/2011
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