Entregue ao extraordinário

* Quando te perseguir parece um meio de me abandonar; quando te infligir sugere uma chance de me tranquilizar. E tua palavra nunca é exata, mas sempre incisiva. E meus dizeres nunca traduzem nada, a fala é esquiva.

* Mas sem dificuldade reponho letras no papel, deslindo detalhes, exalto teus olhos distraídos. E com grande esforço me externo calmo como o céu, sigo teus ritos, há na atmosfera um poder decisivo. Nunca deixo desfalecer o teu som, que me move, me comove, me envolve. Sai do coração e me empurra numa lacuna de incerteza, não me deixa desistir, é a única voz que me dá razão para existir.

* Você se indigna com nossa resignação, você ilumina no entardecer um único coração. Desorientado e relapso, desejoso e escasso... Sim... porque a vontade me sobra na mesma medida que a coragem se ausenta... E você não há de receber um corpo que não se sustenta, acusar-me-ia de ser consumido pelos desperdícios, ressaltaria como sou fraco em meus vícios.

* Tua articulação é plena, mas brada hesitante. Tua expressão é serena, mas me deixa inquietante. Há ambivalência em toda sua aparência, deve ser pecador, mas preserva decência. Uma áurea intimidadora que me dá vontade de transgredir, no minuto seguinte, após suas lições, ajoelho para me redimir.

* Quem é que descrevo aqui? Ninguém de carne, osso ou sangue nas veias. Apenas mitos que vi e reinventei, gerando um ser de luz, vento e areia.

* Quem me aconselha, orienta, reprova, instiga? Quem me torna sobrevivente? Ninguém com pulso ou artéria, mas sim um espectro no inconsciente, feito de outra matéria.

* E continuo a te perseguir para aprender o que há em nós e continuo a te ouvir como a única voz... A voz que brota do peito, move meus pés, não há outro jeito, é o som das minhas fés...