Manifesto indigesto

* Entre as tentações que nos atentam estou atento ao que te desatinou, entre os ciclos que nos movem estou reciclando o que ainda não passou.

* Por que seguir minhas convicções fielmente é um sonho impossível? Porque eu morreria de fome se não me curvasse à indústria, à empresa, ao dinheiro. Porque eu teria que abdicar de qualquer prazer superficial e tudo aquilo que é excedente, porque eu estaria livre desses supérfluos, mas ainda assim acorrentado pelas vergonhas de ser marginalizado e ignorado.

* Mas a ideia de viver isento dessas extravagâncias se apresenta como a mais lúcida. A ideia de moldar seu próprio ritmo, ser dono de si, andar somente com o que tem na mochila, estar em harmonia plena com o espírito. Isso tudo, ao meu ver, faz mais sentido do que a corrida diária pelo nada. Do que os milhões de sapatos e roupas que você esqueceu na gaveta, do que as acusações levianas no jantar que nunca ouço, o cuspe na sarjeta e os sorrisos hipócritas no almoço. Andar, viver e contar me motiva mais do que trabalhar, comprar e se enterrar.

* Ah! mas o capitalismo não te permite viver em sintonia com o que tua mente quer, ah criança... Vá crescer e ver que o mundo te engole sem digestão, que o mundo te devora em uma só refeição. Vá crescer e perceberá que por mais idade que tenha sempre será pequeno, insignificante, só mais um nesse sistema massificante.

* Então é isso? Essas são as opções? Ser imputado em um cotidiano maciço que não eleva alma nem coração, não desperta o refletir, não valoriza a essência? Então é assim? Viver resignado e esmagado na palma de uma mão, sem pensar nem sentir, exaltando só a aparência? Pois no fim tudo se ajusta aparentando ordem, inovação, progresso e integração. Mas que junção é essa num povo que só se suporta? Que nação é essa que carrega marcas de injustiça nas costas? Que progresso e ordenamento além de recebermos o abate e o descarte como tratamento?

* Ah! Fantasias! Cabecinha voa longe, vá crescer e ser engolido... Mas juro que volto, juro que serei cuspido para contar as entranhas daquilo que nos mastiga. Vou sem dúvida renegar meus valores, esquecer pudores, amputar dores. Participarei do jogo que privilegia uns e assassina muitos... Mas cedo ou tarde me livro dessas amarras... Porque ando muito atento ao que nos devora, muito perceptivo com o passado e o agora... Juro que ainda reciclo o meu ciclo.

Priscila Silvério
Enviado por Priscila Silvério em 05/11/2011
Código do texto: T3318912
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.