Miopia da felicidade



Muitos confundem um estado de espírito basicamente internalizado que é a felicidade com estados mistos da satisfação, alegria e prazeres. Jamais perderia meu tempo argumentando que os prazeres, as satisfações e as alegrias, exatamente pelo sentido de prazer que delas emana, não nos são importantes para o viver, principalmente, ou melhor totalmente, quando obtidas, originadas e conseguidas de atos, comportamentos e situações onde a ética humana, social e naturais sejam coparticipantes.
 
O problema tem origem e existência quando apenas acreditamos que bastam os prazeres, as satisfações e as alegrias para nos tornarem seres felizes. A miopia da felicidade nos esconde desta percepção. Somos felizes apenas por um estado de espírito feliz. Podemos ser felizes com ou sem prazeres, com ou sem satisfações, isto não faz dos prazeres, das alegrias e das satisfações algo feio ou pecaminoso, algo ofensivo ou pernicioso, são necessários ao bem viver e são assim permitidos, desde que socialmente éticos e dignos para a natureza humana e elevados também para a essência do universo que nos permitiu existir. Somos enfim felizes quando olhamos o mundo com lentes mentais de felicidade. Somos felizes quando abrimos mão de qualquer esperança e vivemos a realização do momento presente, lado a lado com a desesperança.
 
Somos míopes da felicidade quando confundimos desesperança com desespero e então abraçamos e falácia da esperança como salvação e antídoto contra o desespero. Perdemos a oportunidade de realizar por completo nossa existência a cada momento presente quando confidenciamos e transferimos à esperança nossos sonhos e desejos, quando apostamos na ilusão de que o amanhã nos trará o que queremos, nos ofertará com os objetos de nossas vontades e nos transportará a um estado de graça e de felicidade.
 
Somos míopes da felicidade quando não entendemos que a desesperança é tão somente nada esperar daquilo que de nós não dependa totalmente. Não desejo ser estúpido de afirmar que não nos é permitido sonhar, sim podemos sonhar, não gostaria de ser imbecil de comentar que não podemos ter o mínimo de planejamento em nossas vidas, o que me causa dor e espanto é que na miopia da felicidade atrelamos naturalmente e impensadamente a esperança aos nossos sonhos (a maioria não se realizará, e a felicidade se esvairá pelo desespero e pela frustração de não conseguir suas realizações e ai poderá ser tarde demais para a felicidade) e aos nossos desejos (a maioria deles de nós não depende unicamente e o seu não alcance nos frustrará) ou ao alcance de nosso planejamento (principalmente quando este planejamento não depender somente de nosso esforços).
 
A miopia da felicidade nos leva a um estado de letargia mental e física, daquele que não nos sentiremos felizes por não termos o que sonhamos, por não alcançarmos nossos desejos e por não realizarmos nossos planejamentos, simplesmente porque depositamos nas mãos da esperança parte de nosso viver, e esta esperança, qualquer esperança, é cega, posto que nada constrói por si só. O desespero será o destino para a maioria de nós que depositamos na esperança a construção que deveríamos fazer, nós próprios, a cada presente, sem a certeza do amanhã.
 
Querer o que de terceiros depende, e depositar nisto nossa felicidade é se entregar nas mãos de estranhos e se afogar nos mares bravios do complexo existir, acreditando que pela esperança, a vida, ou os estranhos, ou mesmo milagres possam depositar esforços para o alcance do que desejamos, do que sonhamos ou do que planejamos, e de nós não dependa.
 
Um dos prodígios da felicidade é viver sempre o momento presente como se este fosse o último, amanhã já posso aqui não mais estar, e assim nada esperar em troca pelo que fazemos e realizamos ou construímos, é uma das facetas da felicidade.
Uma das maravilhas da felicidade é construir uma realização do viver minimamente ética, justa e social, permitindo e não tendo a vergonha de ser feliz, aceitando de bom grado os prazeres que não ofendam a dignidade humana e social e ter a ousadia de gozá-los de forma integral, uma vez que pode ser o último para você, sem a necessidade de fazer deles um trampolim para uma vida feliz. Saber que as satisfações podem e devem ser perseguidas sem o vício de tê-las como parte contínua do seu viver e de suas necessidades. Ter sempre os olhos limpos, a mente suave e o coração amoroso são trilhas para a felicidade, mas não são por si só garantias de lá chegar.
 
A miopia da felicidade não nos permite, em geral, ver além da rasa e turva superfície, temos medo de perder o que temos, temos a incerteza do amanhã, temos inveja do que os outros possuem, somos mesquinhos em confundir felicidade com posses, com riquezas, com fortunas, com bens, com prazeres temporais e muitas vezes indecentes, com satisfações pessoais e com direitos a alegrias sem limite de preço. Muitas vezes confundimos felicidade com libertinagem, com abuso de poder, com vergonhosa opressão para o alcance desmedido do que nos trás gozo. Desta forma, a miopia da felicidade nos impede de vê-la por completo, de percebê-la como possível sem depender dos outros, de avistá-la dentro de nós, como uma transformação diária e contínua de nosso viver, e tendo a certeza que ela jamais será contínua ou perene, posto que a vida é “volúvel” e insensível, é aética e naturalmente livre de designíos, destinos, ou direção, e como humanos, queiramos ou não, mais cedo ou mais tarde seremos “feridos”, mesmo sem intencionalidade, por esta “louca” realização do viver coletivo.
 
A miopia da felicidade nos impede assim de realizar ela própria, a nossa felicidade, independente do que tenho, do que sonho, do que planejo, mas dependente do como ajo, do como realizo meu presente, e do como me abro ao estado de espirito da felicidade, e infelizmente dependente também da impessoalidade e da complexidade múltipla do próprio viver.
 
A felicidade, o estado de espírito mental de ser feliz é gratuito, pessoal e intransferível, ele é possível e nada tem a ver com qualquer postura de sábio (não creio em sábios), com qualquer ação milagrosa (não creio em milagres), com qualquer empurrão ou proteção celeste (não creio em divinos e nem em transcendentalismo). A felicidade é real desde que a alcancemos, e não adianta procurá-la fora de nós mesmos, nada e ninguém pode nos apresentar diretamente a ela, para isto necessitamos nos interiorizar, necessitamos do ato introspectivo de pensar, pensar sempre, pensar livre e viver diariamente o memento presente, sem buscas desesperadas ou sem desejos, não podemos confundir o que gostaríamos com o que desejamos ou esperamos, o querer é importante, mas na busca da felicidade querer pode significar nos afastar dela. O que gostaria deve servir de balizador para minha realização do viver, não o que desejamos, o que queremos ou o que sonhamos. Estes e o que planejamos, podem apenas ser mais do que falácias mentais em nosso viver. A felicidade nada deseja a não ser a própria felicidade pessoal e a felicidade social.
 
O homem feliz não precisa nada perdoar, simplesmente porque o perdão implica em carregar mágoas e rancores para com terceiros, um homem feliz não remoí mágoas ou rancores, ele simplesmente ama, uma vez superado o “luto” momentâneo da dor, viverá livre deste rancor e das possíveis mágoas, assim ele é liberto para viver, para amar e para ser verdadeiramente feliz.
 
Não existe o homem sábio, o homem culto, o homem instruído, o homem feliz, o homem alegre, o homem satisfeito, o homem triste, o homem rancoroso, o homem decidido, o homem religioso, o homem naturalista, o homem cético, o homem materialista, o homem falso, o homem científico, o homem medroso, o homem sofrido, o homem lógico, o homem livre-pensador, existe simplesmente o homem. Cumprimos uma única realização do viver, apesar da multiplicidade de seres que nos compõem, e é esta mesma inter-relação de todos estes seres, e muitos outros, com uma gerência central de nosso cérebro, que nos faz quem somos. Desta forma não crer em esperança, não entender a necessidade do perdão, não desejar o impossível, apenas é possível por uma gestão natural de todos os seres que intimamente somos. Não adianta culpar a vida, os outros, ou o azar pelo que somos em realização do viver. É lógico que o meio nos afeta, somos parte o que nascemos, somos parte o que queremos ser, e somos outra parte o que a realização de nosso próprio viver social nos fez, mas sendo plástica nosso cérebro, ele se reprograma continuamente a ao fim do dia, já não somos exatamente aquele que este mesmo dia iniciou, assim, é muito importante um ambiente de inclusão social para permitir a todos uma correta valorização do viver. Mas a felicidade, aquele estado de espírito feliz, mesmo arredio e escondido depende somente de nós próprios.

Arlindo Tavares
Enviado por Arlindo Tavares em 10/05/2012
Código do texto: T3659886
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