Relato de uma ex-cética

Eu, desde certo tempo, me considerava uma completa cética. Qualquer espécie de crença para mim não passava de uma maneira infantil de deturpar a realidade em função de nossos desejos. Apenas era capaz de crer naquilo que via e, de preferência, tocava e cheirava. O real deveria estar perfeitamente delimitado num contexto espaço-tempo. Já o sobrenatural não passava de criação de mentes humanas fracas e impotentes.

Eu, no entanto, me considerava uma forte. Definitivamente não precisava deste tipo de escape. As lembranças que possuía das vezes em que acreditei em algo sempre terminavam comigo quebrando a cara: descobri que Papai Noel não existie, que as mágicas que via no circo não passam de truques baratos, que estrelas cadentes não realizam desejos e, aliás, nem sequer são estrelas de fato... Todas as minhas crenças iam sendo derrubadas, uma a uma elas ruíam pelo chão, livrando-me da muralha de fantasia que impedia o vislumbre da suposta realidade.

Comecei a pensar que as crenças deveriam viver na infância e na infância morrer, pois a criança, por ser indefesa, necessita desta proteção: que decepção seria vir ao mundo e descobrir logo de cara que ele é um ditador completamente inflexível! Não! Era preciso crer na magia, na bondade suprema, no amor... Os pequeninos precisariam desta cápsula protetora, inconscientemente erguida a seu redor para defendê-los das atrocidades da vida real. A descoberta da verdade do mundo teria de ser gradativa. Mas um dia seria imprescindível crescer e, se não se quisesse para si uma sub-existência iludida, desfazer-se de todas as crenças. Para mim, aqueles que carregavam consigo fantasias infantis para a vida adulta o faziam porque eram fracos. Os fracos crêem porque não podem conseguir nada sozinhos. E eu, há muito tempo, já estava sozinha.

Quantas vezes, em minha inocência, não me ajoelhara ante um desenho de deus feito por mim e abria ali meu coração? E quantas vezes deus não deixou de me ouvir e atender as minhas preces? Sempre me disseram que deus amava as crianças e ouvia seus pedidos, mas os meus pedidos quase nunca eram atendidos. Convenci-me de que deus não existia. Rasguei aquele desenho e desfiz-me de qualquer fé, de qualquer crença. Muitas vezes tentavam me convencer de que agindo assim não iria para o céu. “Estúpidos, não percebem que não há céu algum?”. Descobri que existiam inúmeros deuses no mundo e cada um deles era servido com a mesma fé incondicional, a mesma certeza com que eu um dia servira a meu deus, deus esse apenas igual a tantos outros espalhados por aí. E como era pretensiosa a minha fé em sua onipotência.... Que competência tinha eu para pregar tal verdade? Logo eu, que se houvesse nascido na China provavelmente estaria seguindo os ensinamentos de Siddhartha, e se vivesse na Índia pode ser que estivesse naquele exato momento entoando mantras a Shiva.

Mas, com o passar do tempo, percebi o quanto aquele meu real, tão venerado, era impreciso e limitado. Alguns golpes da vida foram me mostrando que eu estava muito longe de ser aquela forte pintada por meu orgulho. A verdade é que eu não sei de nada. Sou uma completa impotente perdida em um enorme universo onde sou aproximadamente igual a nada. Quão grande era minha pretensão ao achar que seria o homem a medida de tudo. “A razão humana é quem dá sentido às coisas, sem nós nada mais existe”. Que proposição mais absurda. Nós, homens, temos a mania de achar que somos donos de uma razão suprema. Não percebemos que nossa lógica não passa de uma lógica humana, subordinada à pequena parcela do universo que nos é dada a conhecer. Precisamos dessa lógica para garantir uma falsa sensação de certeza e segurança em meio ao desconhecido.

Sei, atualmente, que as coisas não precisam de nós para existir, pois existimos da mesma forma que elas e estamos submetidos às mesma leis universais. Não é porque nós, homens, nunca iremos conhecer algo que este algo não existe. Nós também possivelmente não somos conhecidos por inúmeras outras coisas do universo, e, no entanto, existimos. Existimos justamente porque não dependemos da "permissão" delas para existir. Pretensão é pensar que elas dependeriam da nossa.

Hoje posso dizer que creio no sobrenatural. Aliás, chamo-o de sobrenatural apenas por não saber explicá-lo, pois toda forma de existência é natural. Não sei dizer como ele é, nem ousaria tentar fantasiá-lo. Mas sinto-o todas as vezes em que paro para pensar sobre o sentido de minha vida e do universo. Tenho a mais plena certeza de que o mundo não é só o que está ao alcance de nossos olhos.

Eleanorrigby
Enviado por Eleanorrigby em 17/02/2007
Reeditado em 18/05/2012
Código do texto: T384785
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.