Sobre a menina que me habitou

Esperava ansiosamente pela revelação das fotos, não para vê-las, mas para desvendar a revelação expressa, divertindo-me com as fotos em negativo e achando aquilo encantador, como se não fizesse parte do mundo em que vivia, mas algo mágico, feito por fadas ou algo do gênero (coisas que eu costumava acreditar, diga-se de passagem). Contava os dias, as horas, para minha mãe, enfim, chegar do trabalho com aquele envelope branco e amarelo cheio de fitas em negativo, e quando ela chegava, dava um sorriso feito para aquela ocasião, eu saia em disparrada a ela.

Os dias, cada um deles, eram especialmente feitos para mim, e todos que estavam ao meu redor, faziam parte daquela festa diária; havia gente que não me lembro uma só vez de encontrar, sem receber um doce, um presente, como o Seu Manuel, que trabalhava com meu pai. Seu Manuel sempre me dava doces que eu odiava, mas era um senhor tão simpático e estiloso, que mesmo sem gostar dos doces, eu comia com o maior prazer do mundo - certo, algumas vezes levava para as amigas da escola -, meu pai, por sua vez, insistia em cantar Manuel do Ed Motta toda vez que o encontrava, e eu sempre me questiona “Será possível ir ao céu e voltar? Seu Manuel deve ser um anjo, por isso é tão estiloso”.

Havia uma outra mulher também no escritório, que sempre me presenteava, mas à ela, tinha que dar algo em troca; aulas de assovio. Nunca me conformei, tantas aulas dadas, e aquela mulher preferia fingir que não sabia mesmo assoviar, aquilo me frustrava de tal modo, que deixei de aceitar seus doces. Eu era uma criança, mas não gostava que me tratassem como se fosse uma idiota, nem que fosse em troca de doces (melhores que de Seu Manuel).

Tudo, naquela época, era de tamanha inocência, de uma pureza, uma simplicidade tão real e inexistente no mundo em que vivo atualmente, que mal chego a acreditar que um dia, essa coisa tão bonita já habitou em mim (provavelmente, até em você, leitor).

Lembro-me que da área de serviços do meu antigo apartamento, havia um aglomerado de casas de madeira e plástico, de famílias pobres, mas que a vizinhança ajudava, inclusive meus pais. Eu me via impotente meio àquela situação, e queria de qualquer modo ajudar. Imaginava que eles tivessem fome, então, toda vez que tinha uma brecha do olhar de meus pais, durante o almoço, pegava uma sacola de plástico, colocava todo o meu almoço ali e jogava pela sacada da área de serviços.

Hoje em dia, rio ao lembrar das proezas que cometi na infância, mas então me calo, ao perceber o que me tornei, ao comparar a inocência e a prestação ao próximo que tinha, com a ignorância e egoísmo que tenho. E talvez por isso, os dias não sejam mais meus...

Lu A
Enviado por Lu A em 11/04/2013
Reeditado em 22/12/2015
Código do texto: T4236196
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