Feixes

Eu nunca vou entender que diabo é tudo isso. Esse monte de vontade passageira, pensamento descartável, lembranças do que nunca realmente aconteceu. Não sou ninguém, já entendi isso há muito tempo; mas então, porque sonho, quero, tento como se fosse? Como se houvesse ainda saída, salvação disso tudo, salvação de mim? Não dá para entender. É como se eu fosse nada além duma sombra, um fantasma, coisa assim. Espia aqui e acolá, de tudo quer e assombra os cantos de feixe de luz por aí, mas na verdade, não é nada além disso. De um vulto daquilo que um dia, há muito tempo atrás, teve a mísera chance de sim, ser alguém. Isso já me foi perdido há tanto tempo, porque me persegue então? Porque a paz, o conformismo, a acomodação me parecem tão distantes assim? Que inferno. Queria conseguir era fechar logo os olhos, ficar quieta até para mim mesma, esquecer dessas minhas infantilidades, desejos sem uso, finalidade, razão. Só isso que lhes peço, me deixem em paz, desgraça. Deixa eu descansar, entender, aceitar que já não dá mais para eu correr, chorar, soluçar para mais nada: deixa eu me confortar no que restou de todos meus artifícios, minhas fagulhas de gente, ou ao menos do que um dia quis ser. Mas anda difícil isso tudo, às vezes, por mais insuportável e desconfortante que seja, não me parece restar escolha além de seguir. Seguir a luz falsa, a ingenuidade, a vontade de cair mais uma vez. Que ao menos a dor da queda valha a pena dessa vez, por favor. Aqui já não há mais lugar para esse monte de cicatriz, retalho, remendo. Está mais do que na hora de vida, de cor de verdade, e suplico-me que dessa vez possa realmente ser. Mais um sonho sem chão, uma mentira sem razão e já chega, não darei mais chance alguma pros meus olhos, para eu mesma acreditar em qualquer mínima coisa que for.

Letícia Castor
Enviado por Letícia Castor em 26/04/2014
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