Rendição

Uma hora esse caos todo vai passar, eu sei disso. Vou conseguir enxergar tudo com nitidez, usar as palavras como quero, abraçar quem passar e me deixar com vontade. Tudo irá se acertar, eu não estarei mais nesse meio, nessa rota de dor, de tropeço, de queda dessa gente toda lá do alto, dos nossos abismos de todas as noites, todas as madrugadas de insônia. Mas até lá, eu tenho, preciso cair. Preciso sentir o vento cortante no meu rosto enquanto vejo os edifícios quase infinitos como minha paisagem, preciso espiar as janelas do trajeto, ver quem já conseguiu dormir e quem assiste filme até e tarde e finge não sonhar com o que vê. Preciso do sonho, simples assim.

Sabe, não dá mais para negar, para dizer para mim mesma que não quero, não tenho isso dentro de mim. Chega de matar meu romantismo, dessa covardia de jogar-se fora por um orgulho, uma imagem de pessoa que nunca vou ser. Eu sou isso. Isso o que vejo, que sinto, que rio para o espelho, o que uns sentem ao cumprimentar, conversar no telefone, esbarrar na rua, no caminho para o trabalho. Sou o que a simplicidade do cotidiano fez de mim junto à ousadia de criança que fecha o olho e escolhe o quer ver, quer ser, será em com certeza poucos anos ao poder sair de casa, viver como lhe der vontade. Essa fagulha de pequenice da ilusão que coloriu cada dia, cada palavra, cada ação, foi ela que me trouxe até aqui. Dolorida, cheia das feridas abertas e com todos os medos possíveis desse mundo, sim, porém aqui. Presente, viva, sensível ao redor, aos outros, a mim mesma e o que escolho fazer de mim. E escolho que assim que vai ser, pronto! Que venha o sonho e me consuma, destrua e levante do chão na hora certa, me faça ver o cenário como quero e sempre quis, com cores que não estão aqui, sentir um doce que ninguém entende, ninguém nem tenta provar por medo de cair nessa armadilha da fantasia também; mas para mim, está tudo bem-- eu nasci nela. Nasci presa e tão livre quanto o possível no mundo escondido na pálpebra fechada, no canto das páginas dos cadernos velhos, das letras músicas que nós não conseguimos esquecer. Nasci no sonho, para o sonho e desisto, simplesmente desisto de fugir, de procurar exílio na realidade que eu bem sei que não é para mim. Eu aceito a inocência, a tolice das vontades não-realizadas, das quedas que imitam o voo do paraíso.

Isso é tudo que eu tenho, que sinto, que jamais poderei ter. Essa escolha pode me levar, me machucar e rasgar da cabeça aos pés, mas ela é minha única opção de vida. Posso sobreviver de restos dessa força inventada, confiança mentirosa e forjada que eu insisto em criar, mas viver, isso não. Vida para mim é só na tênue linha entre eu e você, entre a utopia o frio desse nosso chão. Só me equilibrando, bailando nessa corda-bamba que sei que estou onde pertenço, onde sempre deveria estar e até o fim, ficarei. Até o sonho romper, até o dia raiar e levar de volta as sombras da minha parede, dos meus desenhos com giz-de-cera que eu ainda, inutilmente, tento esconder.

Letícia Castor
Enviado por Letícia Castor em 09/06/2014
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