ópio do povo (2)

11 de Junho de 2014.

Não gosto de futebol. Nunca gostei. Nunca torci para nenhum time. E nunca me senti tão extraterrestre. Sei que está arraigado em nossa cultura. Mas simplesmente não consigo integrar um sistema que idolatra, considera heróis e enriquece aqueles que sabem chutar uma bola. A maior parte dos brasileiros sabe citar a escalação completa da “Seleção”, no entanto não sabe citar quem são os Ministros da Educação e o da Saúde.

“Ah, mas o futebol é uma arte e nós dominamos!” Pode ser, um gol pode ser uma expressão artística sim, mas num jogo cujo resultado provavelmente foi comprado. Ora, alguém ainda acha que Ronaldo convulsionou em 1998? Alguém acha que o juiz marcou pênalti a favor do Brasil anteontem porque julgou realmente justo?

Mas tudo bem, consideremos que os jogos não são comprados e que somos realmente bons. Ainda assim, que diferença faz sermos campeões do mundo uma vez a mais ou a menos? “Ah, mas ganhar faria tão bem para nossa auto-estima!” Porra! Os gastos para esta Copa foram maiores que nas últimas duas Copas juntas, apesar de recursos e estádios muito piores, e em grande parte nem concluídos! E não digam que os lucros advindos do turismo suplantarão o “investimento”, porque bem sabemos que todas as obras foram superfaturadas. Muita gente levou dinheirinho por trás, e o maior lucro oficial será o da FIFA, uma empresa privada que nosso Governo inclusive isentou de pagar impostos! Estrangeiros olham isso tudo com descrença, não entendendo como deixamos isso acontecer. E nós? Nós achamos normal! Simplesmente não sentimos vergonha, seguimos alienados assistindo aos jogos e torcendo, coniventes com essa balbúrdia e nos orgulhando de ganhar um jogo.

Alguns dizem que como não nos mobilizamos antes, agora não é hora de reclamar, o que era pra ser roubado já foi, e que nossa resposta será nas urnas. Mas não consigo relaxar e gozar! Vivencio diariamente a falta de recursos básicos no serviço público de saúde, já acompanhei inúmeros pacientes que morreram ou sofreram sequelas irreversíveis porque sequer puderam ser encaminhados ao serviço de referência, e sem contar muitos outros com câncer (até mesmo já diagnosticados) que perderam a oportunidade de receber o tratamento curativo porque a doença foi mais rápida que a fila.

Acompanhei as notícias e discussões sobre as vaias à Dilma, mas dessa vez nem me interessei em julgar se foram válidas ou merecidas. O que me inquieta é ver todo mundo torcendo como se fosse normal gastar numa copa o equivalente a 56 Programas Mais Médicos. Sinto algo tão absurdo que me pergunto todo dia: será que estou tão errado? Será que mesmo se gostasse de futebol, eu conseguiria sentir prazer em assistir a um jogo?

“Não gosta? Não assista. Desligue a televisão e faça outra coisa”. Juro: essa é a terceira Copa em que faço isso. É realmente muito difícil tentar estudar, correr, ouvir música ou fazer qualquer outra coisa, quando todos estão alienados gritando na frente de uma televisão. E não sobram muitas opções, porque em São Paulo decretaram feriado em dia de jogo (mesmo jogos sem o Brasil), e não podemos marcar cirurgias eletivas nem atender ambulatório. Ainda assim, mais do que nunca, recuso-me a assistir a um jogo.

Honda
Enviado por Honda em 14/06/2014
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