Madrugada

Chuva rasa lá fora, vento gelado entra pelas frestas da madeira da janela, mas aqui no amontoado de edredom está aquele calor isolado do resto do quarto. Sono sofrido, estranho. Vontade de dormir e, ao mesmo tempo aguentar um pouco mais pra quem sabe ver o sol nascer. Se é que vai ter sol pra se ver. Parece que esse vai ser mais um dia cinza, do começo ao fim. Manhã fria, tarde que se arrasta e noite que já mergulha no escuro da próxima madrugada.

Ainda sinto o gosto do café fervido querendo subir pela garganta novamente; arde, roça na parede do pescoço rasgando-a e dando me mais vontade de desmaiar de uma vez. Esse dia foi tão estranho. Dor, dor como há muito não sentia e logo veio aquela súbita paz. Não avisou, acho que nem planejava em chegar, só tombou no meu caminho e me deu o presente de mais um suspiro de vida, mesmo que discreto, escondido até. Eu a sinto, sabe? Sinto essa fagulha de gente, de força se manifestando em mim agora. Eu quero ficar mais uns minutos pra ver o nascer do dia, quero o cheiro do café fresco mesmo na manhã gélida que for, quero treinar mais um pouco de sorriso pro espelho. E eu sei que isso vale alguma coisa. Eu quero, eu estou aqui; respiro, vejo, sinto e imagino um mundo infinito de coisas que nunca sairão da minha cabeça. Quero um pouco de tudo que a realidade me faz inveja, lembra-de quem sou. Sonho escondida até de mim mesma, fujo naqueles segundos em que a consciência vai embora e deixa-me agir, sentir e ser algo, mesmo que pequeno. É claro que eu sei que nada disso irá me tirar daqui, que nenhuma palavra bonita, descrição fantasiosa e imensa esperança me servirá de nada. Mas eu aceito isso. Aceito os pulos de gato nos muros da rua, os cobertores quentes demais e a constante dor de cabeça que me obriga a fechar os olhos. Aceito a pequenice disso tudo, a beleza da simplicidade e a dádiva imensurável que é enxergar o universo que existe nela. O infinito de humanidade enclausurada nas menores coisas, o redemoinho contido nas sensações e nos pensamentos gigantes que dão um jeito de escapar numa ou outra palavra qualquer. Nada me é de valor maior do que isso, essa garoa do fim da noite, a ansiedade pelos pequenos desejos pro amanhã, os olhos cansados de tanto encarar o vazio, de tanto enxergar o que não há.

Mas tudo bem, o que não posso de fato ver, compenso com o sonho, a tolice da ilusão. Lá eu posso garantir que encontro todos os significados possíveis. E só por agora, chega disso tudo: agora quero só ver um fiozinho de sol e morrer de sono enquanto posso, antes doutro dia tedioso começar e me arrastar com ele e sua secura, sua sede por aquele gosto de vida de verdade.

Letícia Castor
Enviado por Letícia Castor em 08/07/2014
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