Declaração

Ah, se o tempo fosse meu. Imagino o que não faria com ele. Que tela mais bela não pintaria, paisagem construiria, cenário iria compor. Quantos tons de vozes não manteria aqui, ao lado do meu ouvido. Quem não seguraria aqui comigo, sentiria o toque, contaria segredos. Que vida, que mundo mais insano, mais abstrato, mais perpétuo em minha mente esse é! O que eu seria para você, dói-me só de pensar. Dói de pensar na verdade, no chão em que piso agora, no ar gélido que tenta a cada momento colocar-me de volta naquele sono maldito, sono profundo que quase conseguiu levar o melhor de mim. Mas não, por Deus, eu, enfim, despertei.

Posso me arrastar, alimentar-me de migalhas suas e todo semblante que me cativa, posso machucar-me no asfalto áspero, na secura do dia quente-- mas estou aqui. Nada jamais valerá mais do que isso para mim. Não depois daquilo tudo. De todos os sorrisos que deixei passar, dos meus próprios que joguei fora por medo do reflexo, de tudo que sufoquei com minha própria vaidade, orgulho, sanidade mais ingrata. Ela não vale de nada.

A consciência já fez de tudo que podia em mim, disso eu sei. Já deu-me todos os pudores, os saberes, as morais que possam encobrir uma pessoa. Agora chega; estou aqui, afoita, perdida, faminta pela menor das verdades, dos sonhos e do que posso fazer para saborear nem que um vestígio deles. Isso dói, rasga-me dia após dia, mas está tudo bem: é só assim que eu sei, que eu quero viver. Nesse jogo, brincadeira de criança, esconde-esconde da verdade e do gosto implacável da ilusão. Bailando, caindo, sentindo a dor da queda e o prazer do voo, por mais irreal que ele seja. Sem ele, não há fôlego que possa manter-se em mim.

Então venha, que venha todas as dores e todos os amores que eu possa aguentar. Darei de tudo que encontrar em mim para não deixar essa fagulha ir embora, e terei nada em mim além de gratidão. Gratidão pela composição do tempo, da nostalgia e projeção do amanhã, euforia para respirar nesse instante. E nada jamais me preencherá mais do que isso, essa indefinível cena que tenho ao finalmente, abrir as janelas de meus olhos e dar um passo para fora dessa porta. Porta de mim, minh'alma, medos e pseudo-verdade de há tanto já me esgotei.

Letícia Castor
Enviado por Letícia Castor em 04/08/2014
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