Pedido

E por Deus eu suplico: que esse não seja o meu fim. Que hoje, esse dia friorento, onde todas juntas doem sem motivo, a garganta rasga de repente, que hoje não ponha um fim nisso tudo. Em tudo que eu construí de maneira tão meticulosa, despretensiosa até, sem anseio algum. Não queria, não precisava de mais nada; era bem aqui, no canto mal iluminado da sala de estar, no espelho limpo do banheiro, no amanhecer sem sono algum, aqui: na plenitude inalcançável de mim mesma que tudo acontecia.

Tudo, de bom e de ruim. Todas as bençãos e desgraças, raivas e paixões, vontades e mínimas desilusões que compõem uma pessoa. Foi disso que fui feita. Dessa tela abstrata, preenchida por formas que até hoje não sei nomear, cores novas, cores loucas que escondiam-se na imensidão do sonho que eu tentava consolidar. Um castelo, uma fortaleza, um mundo, uma vida-- tudo nas sombras de fuga duma pessoa que sentia a necessidade de criar. Só criando que acreditara poder ser alguém de verdade, vê se pode.

Mas nada poderia se perpetuar dessa maneira, mesmo que recusasse a acreditar; tijolo por tijolo, cada fio de seda foi puxado, rasgando a costura por completo, destruindo qualquer verdade, qualquer valor naquilo tudo. Logo, nada mais parecia possível; gente nenhuma, gosto nenhum. São dores, amores que se vão sem ao menos pararem para ficar, são feridas abertas ardentes o tempo todo, são lágrimas que consolação nenhuma poderá segurar. São sorrisos forçados, vazios. Nada que jamais possa defini-lá como alguém de novo, não. O fim estava bem ali, no batente da janela, auto-convidando-se para entrar.

Entrou e rodou, bailou pelo chão inseguro de lá, levou tanto, mas tanto que sobrou crença nenhuma de que algo pudesse se renovar daquilo tudo. Chega de ilusão, a noite rompeu-se os raios do dia te queimarão antes mesmo que possa perceber. Queimaram, e como. Levaram a palidez de sua pele, o frio que a cercava, as certezas e a segurança de sua redoma tão valorosa. Correu. Correu, caiu, esfolou-se no chão áspero, sentiu a secura dos lábios e deu-se de frente com mais nada além duma escolha: o que realmente poderia ainda ser.

Quem era, quem foi? O que valia ou não naquele meio já tão difuso? Pareciam não haver mais respostas. Não haver mais saídas, refúgios, esconderijos para si e de sua verdade que, mesmo sem conhecer, ameaçá-lhe a cada segundo. Mas foi. Foi, uma hora recuperando algum ritmo, mesmo que torto, real o suficiente para dar-lhe alguma visão de caminho a seguir. As palavras voltaram, assim como a sede. Assim como a fome, como a vida. Como sim, a maior preciosidade que há tanto já havia esquecido: o sonho.

Fugiu, fugiu deste de todas as maneiras que pôde. Correu, derrubou-se em si mesma, mas tudo fora em vão. Por mais que sua teimosia, força forjada, orgulho, vaidade até lhe dissessem que não, não existia mais vida para si lá, foi inútil. Foi o teu semblante aparecer e pronto, tudo se dissolveu. O vento que lhe trouxe para cá foi o mesmo que levou todas as angústias, amarguras embora e deixou nada além da esperança de um dia tocar-lhe, sentir-lhe e poder repousar de vez. E por mais que saiba, saiba com toda a força e consciência existente dentro de si que nada disso a levará a lugar nenhum, é como um dever-- se não deixar esse vestígio florescer, tudo terá sido em vão.

Tu irás embora como todos, a machucará como tantos já fizeram, tudo bem. Mas enquanto ficas, prometa uma única coisa: compaixão.

Se a tua beleza fora suficiente para dar-lhe este sopro de vida tão raro, tão único, tu deves mantê-la aqui. Tu, sem saber de maneira alguma, carregas consigo uma vida todos os dias. Cativou o sentimento mais insano e improvável em algo que nem mais vida tinha em si, então não se vá ainda. Deixe-a acreditar, querer, tentar viver de sua maneira tola, pequena, mas deixe. É tudo que tem e consegue enxergar agora, e nada vale mais do que isso, do que a vida que tu, de repente, despertou em quem já nem sabia mais o que era amar.

Letícia Castor
Enviado por Letícia Castor em 06/08/2014
Reeditado em 06/08/2014
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