Demanda

E que, apesar disso tudo, nada venha e dilacere o nosso dia. Nada entre por aquela janela e destrua nosso amanhecer, ponha-se na frente dos raios tingidos de sangue que sempre vem nos despertar; chega de segurar essa ferida. Chega de estancar o sangramento daquilo que ainda não cicatrizou, chega de fingir que a pele não arde, não rasga mais a cada movimento. Fingimos acreditar nessa plenitude inventada todos os dias. Sorrimos para o espelho e para estranhos, borrifamos perfume caro, damos algum valor forjado para cada uma de nossas mentiras. Vendemos isso. Fazemos disso vida, conquista, orgulho; o ciclo infinito de sermos nossas próprias vítimas passivas o tempo todo. Não lutamos, enxergamos um palmo além daqui, não sonhamos mais com o irreal. E somos felizes. Vai entender como, mas somos sim. Nosso riso não é falso, nossos abraços não são frios: somos artistas, atores, poetas. Pintamos a dela duma cor e nela vivemos, andamos, caímos e sujamo-nos de tinta toda vez. Então tudo bem, de verdade. Que nada nos puxe para fora deste horizonte, nada nos limpe de nossas vaidades, nossas cores sem nome espalhadas pelo corpo-- se estas são tudo que temos sensível ao toque, vamos agarrá-la de uma vez. Vamos sentir cada centímetro de nossa poesia metrada, moldada e de algum jeito, fazê-la tangível, real. Fazer do sonho, nem que por um segundo, algo que possamos sentir e carregar conosco nas telas vazias.

Letícia Castor
Enviado por Letícia Castor em 28/08/2014
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