Dormência

Estava lá esse tempo todo, adormecido apenas. Realmente, não havia como notar, a névoa era forte demais. Mas uma hora esta tinha de passar, claro. E passou, levou consigo todas as nuvens, todo o arder dos olhos de quem estava ao seu redor. O sol, por fim, deu suas caras para aquele horizonte já há tanto encoberto, esquecido.

Pouco se viu, nada mudou. O ar continuava frio, a pele continuava seca; ninguém parava para tocar-lhe, e seus pés ainda não sabiam como saírem daquelas velhas correntes. Mas aos poucos, foi-se arrastando para fora de lá. Aos poucos, sentiu algo novo, alguma vida, mesmo que pequena, dentro de si. E deu de tudo, todo o sangue, todo o fôlego para mantê-la presente, para não cair naquela noite mais uma vez.

Embora os olhos ainda lacrimejassem, a voz ainda teimasse em falhar, sentiu sim este novo gosto descendo, correndo por si. Deixou-o fluir, tomar conta, dominá-la de todas as maneiras possíveis. Não seria mais prisioneira, não cairia na armadilha novamente, disso tinha certeza. Queria a vida, queria a dor. Queria o amor e tudo que este trouxesse ao seu lado. Não tinha mais medo.

O medo cercou-lhe por todo aquele tempo na escuridão. Foi ele que a enclausurou, fechou as grades da gaiola, selou-lhe os lábios e manteve suas mãos atadas. Não deixava paisagem nenhuma ser vista pela janela, doce nenhum tocar-lhe a língua. Não, isso nunca mais a seguraria-- se a morte seria sua única saída, que fosse então por um caminho de prazeres; de verdades, de loucuras, de algo que fizesse-lhe acreditar que os cortes todos valeriam a pena.

E sentiu, por Deus, sentiu de tudo. Todas as vontades, as raivas, as tolices, as pequenices que a vida pôde lhe trazer. Carregou-as. Levou-as consigo pelo caminho florido, colorido e infantil que criara e de tanto se orgulhou. Exibiu-se! Com toda a altivez que achou dentro de si, jogou sua felicidade prepotente pelo mundo, jogou feito confete e dançou por esse chão. Ela sabia do fim e nem se importava-- ele não poderia ser pior do que aquele quarto sem luz em que se criou.

Hoje corre, vive, sente e rouba, joga por todos os lados, grita e sorri, canta sem saber qual é o real tom de sua voz, e com isso está o mais plena quanto possível. Nada lhe para, segura sem motivo: sabe da vida, sabe de si. Sabe de sua insignificância, impotência e imagem imperfeita, sabe ser grata por isso. Grata pela dor e pelo amor que encontra por seu caminho; o fim já enxerga de longe e até acena, sorri. Não tem pressa alguma, sabe que irá chegar lá. Mas nada, nada irá tirar-lhe do caminho perpétuo que escolheu viver, o de aceitar e correr com todas as feridas na pele. Todas as vontades, as belezas que consegue achar e carregar consigo para esse temido final.

Letícia Castor
Enviado por Letícia Castor em 01/09/2014
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