Purgatório

Nada disso aqui me faz mais sentido algum. Essa névoa, esse caos, disso tudo já larguei, deixei escapar de meus dedos e apenas deixei-os sentir o vento passando entre si. Não tem como mais extrair verdade alguma desse lugar, esse horizonte vermelho que não nasce de vez nem se põe, apenas permanece aí, doendo-me a vista, cegando-me aos poucos.

E eu gosto desse arder; gosto de sentir a lágrima escorrendo-me pelo rosto, desenhando linhas tortas de expressão que tenho nesse calor, na dor, no prazer latente que brinca nesse meio. Um não existe sem o outro. Para sentir, é preciso deixar o sangue jorrar; para ter-se o doce definitivo correndo-lhe pelos lábios, é preciso saber qual é o real gosto da amargura. Do azedume, da saudade, da vontade esquecida, da sede da ilusão. Só assim que o gosto não vai embora, que permanece no fundo da garganta sempre nos fazendo pedir por mais.

Então, no fim das contas, foi tudo necessário-- ou melhor, é necessário até nesse mesmo instante. Toda a dor, todo o horror do segundo, do momento em que deixo as feridas abertas para o ar passar e soprar-lhes até cicatrizarem. Preciso disso agora, da agonia de querer-te a todo momento, das incertezas e das raivas, da tentação de cair no sonho de uma vez. Isso me mata e me desperta, me dá e me tira o ar sem eu ao menos perceber.

E garanto-lhe, por isso tenho mais nada além de gratidão: gratidão pelo sabor que anda lado a lado, pela possibilidade de sentir a embriaguez da euforia mais uma vez e fingir que nada aconteceu. Que conheço nada desse universo e posso jogar-me de cabeça mais uma vez, sempre no mesmo abismo, com o mesmo sol queimando-me a córnea e obrigando-me a ficar acordada, apenas esperando por você.

Letícia Castor
Enviado por Letícia Castor em 15/09/2014
Reeditado em 15/09/2014
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