enxaqueca

Deito-me na tentativa falha de sabotar a dor que me definha os miolos e me range os dentes, a dor que se faz centelha constante e lateja ardida quanto brasa recém acesa no interior da massa cinzenta. Como se já não me bastassem os pensamentos. Meu pai chega com os remédios. Ao menos a parte prática da função paterna ele haveria de saber exercer. Ou talvez só seja a parte humana que vêm à tona quando me olha nos olhos fundos e só acha dois buracos vazios clamando anestesia. Será que morro se empurrar os remédios pra enxaqueca com um gole de vinho barato? Vinho esse que comprei na sexta passada pra suportar o fim da noite, depois de pontuar os motivos pra mãe e não ser censurada. Escondi o resto no guarda-roupas porque ela é a única que não me censura. Sento-me, clico no bloco de notas e começo a vomitar a minha agonia diária enquanto toca Dust In The Wind no repeat. Acho propício. Tão propício quanto ter lido A Obscena Senhora D, ignorando a dor física e alimentando a interna. “Nada me entra na alma, palavras grudadas à página, nenhuma se volta para agarrar meu coração, tantos livros e nada no meu peito, tantas verdades e nenhuma em mim.” Eu reflito sobre a insatisfação crônica e sobre quão egoísta é o ato de nos apoiarmos em pessoas e fazê-las de subterfúgio da nossa frustração apenas porque fazem-nos sentir felizes e têm qualidades. Por que não nos bastamos com os sentidos momentâneos que achamos pra suportar a vida? Como meus cactos que sempre esqueço de por água, ou o cachorro que eu quero ter, ou o picolé de blue ice, ou vídeos de bebês foca que vejo pra desanuviar a tristeza. Passamos a vida toda procurando um sentido porque aceitar que não há sentido algum nos é mais doloroso do que procurar e não encontrar. Então continuo, e abstraio a ideia de misturar o analgésico com o álcool. "Eu Nada, eu nome de Ninguém, eu à procura da luz numa cegueira silenciosa." Ao menos por enquanto.

Keuri Caroline
Enviado por Keuri Caroline em 20/09/2014
Código do texto: T4969307
Classificação de conteúdo: seguro