Misericórdia

Tem problema não, isso eu te digo; vai passar. Tudo passa, eles dizem, certo? Aí. Se todo aquele caos, aquela desordem que pairou por aqui por tanto tempo deu seu jeito de ir embora sem eu ao menos tentar, sei que não há porque preocupar-me agora. Aquelas dores se foram e essa irá também. O vento vem e leva tudo, queiramos ou não. Leva as nossas felicidades também, e ah, essa foi tão passageira! Mas o quão viva fez-me sentir, não há nada que supere isso. Eu estive aqui, estou ainda. Posso estar caída, doída nessa hora por lembrar do teu gosto que ainda me é recente demais, mas sem problemas: ele irá embora. Uma hora, tu terás que me deixar de vez. Deixar meu paladar em paz, meu pensamento, minha lembrança do tátil que, ainda que áspero, tem o abraço que mais fez-me sentir alojada. Eu não quero isso, de jeito nenhum; não quero ter de esquecê-lo. E ainda, sei não ter direito de escolha também-- querer-te ou perder-te vez, ambas foram minha sentença final. E tu mostrou-me nenhuma misericórdia. Nem no prazer, nem na dor; deu ambos em igual quantidade, ilusão e queda, sabor que deleita e que arde na ferida que tu acabas de reabrir em minha pele. Eu lhe deixei fazê-lo, eu sei. Então tenho razão nenhuma para culpar-lhe também: fui em quem deixou a porta aberta. Aberta para a ruína viciosa que é sentir-lhe em toda sua síntese, sua beleza e deixar teu veneno apenas correr por todo canto de mim. Se é para morrer, que assim seja. Que seja dum gosto tão doce feito o teu, que faça-me fingir de mártir de uma vez. Amando-lhe de maneira cega, sem perdão: sentido a raiva e toda a sede que ela traz consigo. Deixe-me te odiar, te querer sem barreira alguma para meu imaginário sem qualquer tipo de inibição.

Letícia Castor
Enviado por Letícia Castor em 01/10/2014
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