Afogamento

Eu gosto disso aqui, sabe? É, isso, essa vista. Esse caos, caos completo em que piso nesse exato momento. Esse caos que se reflete aqui, bem ao meu lado, na bagunça do meu quarto, minhas gavetas, no espelho embaçado. Nos calos dos meus pés cansados, na voz rasgada que ainda dá seu jeito de jogar uma palavra ou outra no ar. Gosto dessa dor, adoro. Adoro o sabor sofrido que as ondas de prazer inesperado vem e deixam aqui perpetuando comigo. Adoro saber que pude senti-las, comportá-las e as dar lugar num corpo tão largado feito o meu. Sentido, sentido mais do que deveria, com certeza. Teve de nada, seco, limpo, puro, pode-se dizer. Mas de algum jeito, absorveu de tudo que passou à frente, toda a sujeira e toda a beleza que encontrou; e agora simplesmente não quer largá-la. Fez-se dono de uma vez, sem consentimento ou direito algum. Quer de tudo, mas carrega nada consigo. E por isso, frustra-se. Faz de si mártir, cordeiro, vítima do sacrifício final. Sacrifica tudo que viu e com que sonhou. Tudo que criou para si entre suas paredes, debaixo de seus panos. Tudo que lhe formou e deu fôlego para estar aqui agora: mesmo que exaurido, presente, real. Nada jamais valerá mais do que isso, a consciência da própria carne andar e sentir esse chão debaixo de si, sem mentiras, sem ilusões, com nada além das rachaduras e cores das paredes em que agora se apoia. Se dói, é porque escolheu sentir essa dor. E o prazer, a euforia, esses são até mesmo surreais; em que mundo, dimensão em que isso seria possível? Molhar os pés na maré desse oceano de ressaca e, apesar do medo de afogar-se, ainda sentir a água entre os dedos, a pele viva respirando a beleza ao seu redor? Nunca. Em todos os sonhos, todos os universos em que pisou, jamais vislumbrou coisa dessa: o mínimo prazer da realidade. O equilíbrio, a corda-bamba entre entregar-se ao amor ou ao horror que pairavam o tempo todo ao seu lado. Isso é irreal, é insanidade. É a junção de tudo que continha em seu imaginário tornando-se tangível: alcançando o delírio de meramente existir. De viver, da maneira que lhe for possível por agora.

Letícia Castor
Enviado por Letícia Castor em 04/10/2014
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