Mercê

Não dá pra explicar. Foi surreal demais, apenas isso. Engraçado, o que nos faz pensar em surrealidade? Momentos, momentos insanos. Coisa de filme, aquela cena toda bonita que vira história depois. Mas não, foi tudo tão pequeno. Tão pequeno e ainda assim, imenso de algum jeito. Só pra mim, eu sei. Só eu que estava lá, afinal de contas. Nessas horas, ninguém respirou o mesmo ar; todo mundo saiu e viveu, fez suas loucuras, cometeu seus erros e se levantou pouco depois. Eu naquela quietude toda, vê se pode. Desperdício. Mas foi aquilo que me trouxe até aqui-- o que pode não dizer lá muita coisa, sim. Aqui não é nenhum paraíso, eu sei. Mas é bom, sabe; é real, eu me sinto aqui de verdade. Eu toco os móveis, a pele, tiro o cabelo do rosto. Eu tomo meu café e assisto bobagem na televisão. E eu gosto disso; acho que vejo alguma beleza oculta, inexistente no ócio, vai saber. Se paro pra lembrar, o que me marcou? O que, de tudo isso, foi o que fez-me acreditar em tal coisa, querer isso, aquilo, essa pessoa ou outra qualquer? Foi aquela minimalidade toda. A pequenice escondida por aí, num canto desse quarto, daquela sala, um cheiro que ficou só por um dia me fazendo dormir. Um gosto que nem sei mais se era doce ou amargo, um toque que ainda faz minha pele arrepiar. Não foram loucuras, entenda. As loucuras, ah, dessas eu quis a vida toda! Sonhei, criei de tudo deu pra carregar comigo por enquanto, e isso foi bom. É bom até hoje; sem o imaginário não dá vontade de nada. Sem uma ingenuidade, chame de ignorância até, pra quê dar-me ao trabalho de aguentar isso tudo? Eu não. Quero mais é me fazer de boba, brincar de faz-de-conta com essa ladainha toda. Já sei que não são esses escapes que definem qual o passo que terei ou não coragem de arriscar: são as menores frações de divindade que deixo o dia jogar em mim. De beleza, poesia, as manifestações quase intocáveis que vem, deixam algo conosco e vão embora dum jeito tão despretensioso quanto vieram. Então não tem problema, está tudo bem, do jeito que deve ser. Deixo a ilusão me engolir e cuspir fora, fazer de mim o que quiser. Ela que me carrega e põe de volta nesse caos, esse vendaval de humanidade que não cansa de querer nos derrubar. Que ele me derrube de uma vez.

Letícia Castor
Enviado por Letícia Castor em 04/10/2014
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