Escravos

A gente bota músicas daquelas bandas que nunca ouvimos falar e nos sentimos bem. Limpamos o quarto por cima, uma varrida de praxe, abrimos as janelas pra poeira voar e ver se entra alguma luz. Requentamos o café de anteontem e tentamos ignorar o gosto mais amargo do que o normal. A gente ama, a gente quer. Quer do que? Quer de tudo. Tudo que dá pra ter, dá pra enxergar daqui, fingir que toca, que sente, que existe ao nosso lado. Daquilo que nos disseram anos atrás que precisaríamos agora. Do que nos mostraram sem intenção alguma e, vai entender porquê, ficou na nossa mente. São imagens tão vazias, tão pequenas; porque, de toda a beleza que nos jogam, nos vendem o tempo todo, o desejo resolve morar naquela minuciosidade que a gente mal sabe nomear? Não tem como entender. A gente quer o simples, o belo, o pequeno. Tudo que precisamos realmente está lá. Mas as vontades se disfarçam; vem e nos enganam, botam máscaras, usam outro nome, outra voz mais macia pra sussurrar esse monte de mentira no pé do nosso ouvido. E ah, como nós gostamos de acreditar! Adoramos isso, essa babaquice da escravidão, da devoção por algo que já nem sabemos mais distinguir. Que essa seja nossa tormenta então. Que isso nos devore, esses excessos decorados de promessas, de alucinações. Deixa logo a gente cair, morrer por isso tudo: pela mínima fome de vida que, escondida, nos faz acreditar no surreal. No sonho a gente não é nada: só cria e finge que ama, que adora. Só serve a malícia perpétua de não conseguir sentir o mísero instante em que ainda não se entregou.

Letícia Castor
Enviado por Letícia Castor em 07/10/2014
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