Clemência

Vê se aguenta só mais um pouco por aqui, eu lhe peço. Só mais um segundo ao meu lado, comigo em teu ombro, com as nossas respirações entrelaçadas, confundidas naquele mormaço do fim de noite. O frio, com ele eu já estou acostumada, mas por hoje eu apenas não o quero de volta por aqui. Não quero mais aquecer-me com as mãos secas, com o reflexo pálido que já tanto conheço, não: eu quero você. Eu quero toda a dor e deleite que tu me proporcionas, quero todo o arrepio e fôlego perdido em mim para arriscar uma palavra, um toque, uma mínima fração verdadeira de mim. Meu amor, como eu quero que tu me vejas; vejas como sou, sem esse monte de artifícios, de camadas sem beleza alguma que inutilmente uso para esconder-me dos teus olhos. Eles veem tudo. Posso tentar, posso fugir e correr o quanto quiser, mas sei que não me será de uso algum: tu me dilacerou no momento em que deixei teu olhar encontrar o meu, naquele mísero segundo em que tua imagem projetou-se em minha frente. Foi assim, de repente, sem eu querer, sonhar, pedir-- e até agora não sei de onde tu surgires por aqui. Mas ainda assim, não quero perder-te. Não por hoje, não por agora onde dou tudo de mim para doar-lhe algum suspiro, algum valor para manter-lhe por perto. Das minhas belezas, dos meus encantos e horrores, isso eu guardo comigo; me diga o que tu queres que tornarei-me a melhor parte de mim. Tudo isso por aquele vestígio, aquele instante onde tu me reviveu da maneira mais louca que há. Tu surgiu diante dos meus olhos e deu-me essa visão para amar. Deixe-me fazer parte dela então, eu lhe prometo, ela será perfeita. Não por mim, mas pelas colunas que levantaria para carregar-lhe, para deixar-lhe sob a luz acima de nós. E eu, ah, isso eu posso lhe dizer, eu seria a maior insanidade possível dentro de mim. Eu, de uma vez por todas não precisaria mais sonhar.

Letícia Castor
Enviado por Letícia Castor em 17/10/2014
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