Temporal

Chega a ser surreal o quão vivas as memórias se mantém na minha cabeça. É uma nostalgia que chega a doer, como é que pode; dói e deleita, delicia ao mesmo tempo. Isso não faz sentido nenhum. As horas no tapete, o velho aparelho de som com seu botão gigante de volume.

As letras em inglês todas embaralhadas saindo da minha boca. Os pelos de bicho, jogos de videogame para botar de dois quando viesse visita em casa. Chegada da escola, calor infernal. Saudades tão recentes que eram quase táteis para mim. Vontades. Vontades imensas, insanas, possíveis. Olhando de lá, tudo ainda podia acontecer naquele chão todo, horizonte límpido que via à minha frente.

Lembro do horror que parecia não ir embora, lembro da dor. Da solidão de deixá-los ir sem voto, escolha, noção. Da euforia de recebê-los de volta de repente, sem aviso ou pedido algum. Ou os novos amores, com certeza. Os novos encaixes de sonho, os cheiros dos cômodos, os cachos dourados daquele menino que fez-me cair tantas e tantas vezes. Fez-me pensar, vê se pode, que aquilo já era o fim. Os abraços sem significado algum, o jeito engraçado, sutil e malando da perspectiva aumentar; de passo em passo, queda em queda ela vinha, esticava para lá e para cá, mostrava-me cores que eu jamais imaginaria sozinha. E ainda o faz, claro.

Todo dia, todo suspiro, todo gosto e piscadela que dou por aqui, é tudo um segundo corrente, passante, louco, impossível de segurar, domar por entre meus dedos. Essa música de agora e todas as outras, as que nunca sairão da cabeça, as melodias que sempre esqueço de gravar comigo: tudo faz parte, toca junto, faz dançar.

Que seja então, que venha toda a saudade e a malícia, a energia passageira que faz-me correr agora e fingir que não quero olhar para trás. Que o hoje logo transforme-se em passado, e olha só, faça-me querê-lo de volta assim, todo falho do jeito que é. É loucura saber que todas essas feridas mal feitas de agora ainda irão me encantar-- tudo bem, então. Um passo para frente, infinitos para trás: que o ontem dê-me inocência para esquecer do instante presente, para construí-lo sem dó.

Que eu ame tudo isso noutro dia, mas por hoje contento-me com tentar tocar o ontem mais uma vez, só para alcançar aquela beleza toda que veio e passou por mim assim, tão despretensiosamente: na mais pura natureza do vento e o que ele carrega consigo.

Letícia Castor
Enviado por Letícia Castor em 30/10/2014
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